No dia seguinte, Topsius resolveu visitar o Monte das Oliveiras... Evidentemente Teodorico não estava em condições de acompanhá-lo. Certamente a montaria potencializaria as dores que sentia nos músculos e ossos.
O rapaz ocupou um dos sofás e permaneceu entretido com o seu “O Homem dos Três Calções”. Não deu o ar da graça no refeitório e assim evitou um desagradável encontro com o pai de Ruby, o “Hércules gigante” das pesadas botas.
Quando a tarde caiu, Teodorico já se sentia plenamente recuperado e apto para novas empreitadas.
(...)
Conforme
a noite se aproximou, Pote propôs uma diversão adulta na casa de certa Fatmé...
Essa dona obesa possuía “um doce pombal de pombas”... Como se deve supor, essas
“pombas” eram colocadas à disposição dos clientes que aparecessem em busca de
prazer.
A atração prometida
para aquela noite era “a gloriosa bailadeira da Palestina”, anunciada como “a
Flor de Jericó”. O número artístico que apresentaria era o da “dança da Abelha”,
uma tentação para “os mais puros”.
(...)
A
casa de Fatmé ficava próxima à Torre de Davi...
Via-se que o ambiente
era dos mais modestos... A dona parecia aguardá-los... Usava véus brancos e
tinha os braços descobertos. Teodorico notou que eles traziam cicatrizes que acusavam
superados males da peste.
Fatmé recebeu o
português... Puxou sua mão e a passou na própria testa... Depois a beijou com
seus lábios carregados de um cosmético de vermelho berrante. Na sequência o
levou diante de uma cortina “preta, franjada de ouro como o pano de um esquife”.
Até mesmo o atrevido e
insaciável Teodorico, sempre interessado por novas aventuras com as mulheres, parecia
não ter estrutura para encarar aquele antro que cheirava a rosa... Ele estremeceu
ao entrar no ambiente dominado por um silêncio aterrador.
Impossível não notar
que a sala principal havia passado por reforma recente. A cal na parede era
fresca, havia cortinas arrematadas com tecido de algodão e as janelas estavam
vedadas por ripas que impediam a passagem da luz externa. Ao longo da parede
havia um estofado bem amassado e cheio de remendos, dando a entender que o
local era mesmo concorrido.
Alguém havia abandonado um bandolim no meio das almofadas... Sobre o
tapete estava um braseiro de latão apagado. Sobre suas cinzas abandonaram uma
pantufa de veludo ornamentada de lantejoulas baratas.
Havia
infiltração no teto, de onde pendiam correntes que sustentavam um candeeiro...
A atmosfera era morna e o ar pesado denunciava mofo e incenso... Pelos
cantos viam-se besouros que passavam de um lado para outro.
(...)
Teodorico acomodou-se no lugar ao lado onde
Topsius deveria se sentar...
Uma negra oriunda de
Dongola (reino que se localizou em terras do sul do Egito e do norte do Sudão e
foi disputado por cristãos e muçulmanos) apareceu. Ela trajava um camisão
vermelho, tinha os braços repletos de braceletes prateados e se aproximou
oferecendo “café aromático”.
Enquanto o português tomava da bebida, Topsius chegou à sala sem
esconder sua decepção. Anunciou que lamentavelmente não poderiam assistir à
dança da Abelha. E tudo porque a Rosa de Jericó não estava na casa...
A
dançarina havia sido escolhida para se exibir diante de certo príncipe alemão
que acabara de chegar a Jerusalém para visitar os lugares santos...
Dona Fatmé chegou
logo a seguir e também mostrou-se contrariada... O que podia fazer? Ao mesmo
tempo em que invocava Alá, dizia com humildade que os serviria como escrava. O
que mais podia fazer? A fatalidade levara a bela Rosa de Jericó para junto do príncipe
louro.
Teodorico
entendeu que a dona dizia nas entrelinhas que a preciosidade da casa fora
deslocada para o digno alemão que chegara àquelas paragens com toda pompa... É
por isso que tratou de dizer que, apesar de não ser príncipe, vinha de uma
família que possuía muitas posses (referia-se obviamente à tia Patrocínio).
Emendou que “os Raposos primavam pelo sangue no fidalgo Alentejo”. E acrescentou
que a Flor de Jericó estava sob medida para os seus “olhos católicos”, então só
podia entender como ofensiva o envio da dançarina ao “romeiro encouraçado” da “herege
Alemanha”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_13.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto