sexta-feira, 3 de novembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – a jovem núbia sentia-se contrariada em terras estrangeiras; nada deu certo para Teodorico na casa de dona Fatmé; retirada furiosa e retorno ao Hotel Mediterrâneo; reflexões sobre a necessidade de comportar-se de acordo com os princípios de tia Patrocínio

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_13.html antes de ler esta postagem:

Enfim, a noite de diversão que Teodorico esperava parecia ter início.
A pequena porta abriu-se outra vez e do outro lado apareceu “uma esplêndida fêmea”... A mulher tinha a pele da cor de bronze e podia mesmo ser associada a Vênus.
Ela permaneceu estática por causa da luz que provavelmente a cegava... Também a presença dos homens parecia assustá-la. Vestia uma tanga branca e trazia os cabelos desgrenhados... Selvagem era a sua juba... A dona Fatmé providenciara algumas contas de vidro que lhe caíam do pescoço e se depositavam entre os “seios rijos, perfeitos e de ébano”.
Teodorico encantou-se pela presa... Mas de repente ela passou a portar-se de modo estranho. Deu uns saltos estranhos e pronunciou frases incompreensíveis... Os estrangeiros nada entendiam de seu “lu! lu! lu! lu!”... Na sequência atirou-se sobre o divã tal como uma esfinge e encarou-os.
Era com orgulho que Pote cutucava o português... Chamava-lhe a atenção para os atributos físicos da moça. Quem poderia dizer que dessa vez ele não acertara? A garota era uma pantera!
Dona Fatmé também dava a entender que o rapaz tirara a sorte grande.
(...)
Teodorico entendeu que a núbia estava interessada... Ela o fitava! Sua barba devia ter chamado a sua atenção.
Confiante, o rapaz decidiu levantar-se. Aproximou-se da jovem como o predador de sua presa. Os olhos dela se inquietaram... Então ele começou a dizer-lhe frases que julgava gentis... Chamou-a “minha lindinha” e fez carícias em seu ombro.
Talvez porque tivesse se apavorado com a brancura de sua pele, a moça o repudiou no mesmo instante. Soltou um grito como se estivesse ferida. Teodorico insistiu e passou a falar de seu país... Deu a entender que ela gostaria de conhecê-lo e que ele era capaz de levá-la para Lisboa... Falou de Dafundo e do Silva, que nem se comparavam à decadente Jerusalém... Disse que mulheres como ela eram muito bem tratadas em Portugal. Os periódicos publicavam a respeito delas e muitos proprietários as cobiçavam para casamento.
(...)
O rapaz fez de tudo... Gastou o seu arsenal de gentilezas... Mas era evidente que a moça não o compreendia.
Teodorico entendeu que ela estava saudosa de sua distante aldeia na África. Ele mesmo desanimou. Pensou o que tanto a fazia entristecer... Rebanhos de búfalos, tamareiras, o grandioso rio local, ruínas e túmulos dos antigos líderes políticos de seu povo...
Ele resolveu apelar... Quis agarrá-la à força. A jovem fugiu para um canto onde se encolheu, tremendo de medo. Chorou copiosamente.
Aquilo era muita maçada... Teodorico deu um grito de protesto e pegou o capacete que tinha deixado a um canto. Passou pela cortina com tanta violência que o pano esgarçou.
(...)
A esperada “festa do Oriente” não ocorreu. Teodorico desabafou sua ira numa terrível gritaria... Enquanto isso a dona Fatmé discutia ferozmente com Pote... Ela ainda teve coragem de cobrar mais sete piastras de ouro.
O mais angustiado, sem dúvida, era Teodorico...
Os três deixaram a espelunca fedorenta. Para trás deixaram Fatmé e o agito de seus braços... Ela gritava impropérios e maldições aos pais, aos ossos de seus avós e à terra de onde tinham vindo.
O caminho que tomaram em direção ao Hotel Mediterrâneo era de escuridão total... Dois cães de rua os seguiram com seus latidos por algum tempo.
(...)
Depois que se acomodou em sua cama, Teodorico pensou com saudade em sua risonha terra... Será que só experimentaria revezes em Jerusalém?
Se assim fosse, não via a hora de retornar para Lisboa... Pensou que após a morte da tia Patrocínio sua vida melhoraria significativamente.
Jamais experimentaria em sua pátria as atrocidades de uma “bota bestial e severa num corredor”... Além disso, nenhuma mulher (ainda que de “corpo bárbaro”) lhe fugiria em pranto após ser por ele acariciada.
O dinheiro de tia Patrocínio lhe proporcionaria inúmeras aventuras e seus desejos de “relaxações” seriam todos satisfeitos.
Era tudo uma questão de prosseguir cativando a tia com seu santo comportamento.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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