Kapuscinski conta que precisou labutar “até chegar ao Homem” latino-americano... Diz que abriu caminho entre matagais e exuberâncias, entre “simulacros e reproduções”... Driblou demagogias...
Garante que conseguiu detectar dramas e derrotas, humores, honra, traição e solidão da gente latino-americana...
(...)
Um tanto dramático...
O autor registra algumas passagens que vivenciou (ou coletou) enquanto
percorreu países não menos misteriosos ou abalados politicamente do que os que havia
conhecido na África.
No deserto mexicano, por exemplo, certa vez encontrou
um velho índio com enorme chapéu à cabeça e sentado num buraco que fizera para
se proteger da ventania... Curioso, o polonês parou o carro para observar
melhor... Viu que o velho tinha um gramofone bem antigo, que girava um disco já
muito gasto. A cantiga rouca e apagada que saía do aparelho dizia algo como “Rio
Manzanares, dejeme passar”...
Kapuscinski cumprimentou e permaneceu por algum tempo diante do homem...
Mas este sequer parecia notá-lo. Então o gringo disse que não havia rio por
ali... O velho índio fez ainda algum silêncio até que respondeu que ele mesmo
era o rio e que não podia atravessar a si mesmo.
O índio voltou a girar a manivela do aparelho e retornou ao seu
silêncio.
(...)
Che Guevara foi executado em outubro de 1967 em terras bolivianas, onde
estava engajado numa guerrilha.
Kapuscinski faz pequena narrativa sobre o sargento Mario Terana (Terán),
que foi quem matou o Che.
Ele explica que, após o
feito, o militar boliviano sofreu profunda crise e não conseguia responder
perguntas ou obedecer às ordens que recebia... Tornou-se depressivo e sentia-se
perseguido... Diz-se que foi dispensado do exército e tratou de andar
disfarçado para não ser reconhecido por aqueles que pretendiam vingar a morte
do líder revolucionário.
Não havia ambiente onde
pudesse permanecer por muito tempo... Não se sentia seguro nem mesmo em sua
própria casa, onde viveu trancado por algum tempo... Paranoico, começou a
imaginar que também sua residência podia ser uma armadilha tramada por
guerrilheiros...
O final do relato do
polonês garante que Terana parou de beber porque tinha certeza de que podiam
envenená-lo... Decidiu perambular pela estrada... No segundo dia de caminhada
suicidou-se nas proximidades de uma pobre povoação chamada Madre de Dios.
(...)
Todavia sabe-se que Mario Terana foi protegido e adotou nova identidade...
Por ironia do destino, em
2006 passou por uma cirurgia oftalmológica conduzida por médicos cubanos na
Venezuela.
(...)
Na sequência, Kapuscinski apresenta considerações
sobre o que aconteceu a um seu amigo peruano, Pedro Morote...
O rapaz ingressou num grupo guerrilheiro com a intenção de lutar contra
a aristocracia... Era ainda adolescente quando conheceu Javier Heraud, o poeta
líder da guerrilha.
Corria o ano de 1963 quando os revolucionários caíram
numa emboscada em Puerto Maldonado... Na ocasião Heraud, que contava 21 anos,
morreu enquanto tentava escapar da perseguição implacável de militares por um
rio.
Morote conseguiu escapar ileso... Permaneceu escondido por algum tempo e
voltou à ativa na luta por reforma agrária quando os militares assumiram o
poder (provavelmente uma referência ao golpe impetrado pelo comandante geral do
exército Juan Velasco Alvarado em 1968).
O polonês teve oportunidade de viajar com Pedro Morote (embora isso não
esteja claro no livro, é bem provável que ele tenha se tornado funcionário do
novo governo) por distantes localidades, onde o rapaz tinha a responsabilidade de
distribuir “terras entre os camponeses pobres e humildes”.
Curioso foi o fato de Morote receber considerável herança deixada por
antigo amigo que viera a falecer... Os tempos de guerrilha e de ativismo pela
reforma agrária ficaram para trás...
Kapuscinski conta que Morote decidiu abrir um luxuoso restaurante em
Lima, o La Palisada... O estabelecimento tornou-se frequentado apenas pelos
mais ricos da sociedade.
O negócio resultou em bem
sucedido... Morote engordou e passou a percorrer animadamente o salão, e a cantarolar
versos da autoria do antigo comandante, Javier Heraud...
Mas os clientes não precisavam saber disso.
Leia: A
Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto