quarta-feira, 13 de abril de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – no hospital da Rua Plocka; de volta à redação; estranhamento, monotonia e desinteresse pelo cotidiano de trabalho dos companheiros; uma sala para Kapuscinski

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/04/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_8.html antes de ler esta postagem:

É claro que não foi por acaso que Kapuscinski “incrustou” em seu “A Guerra do Futebol” o trecho de “Tristes trópicos” (1955)... Sem dúvida, muito significativo.
Evidentemente o polonês estava se sentindo como o etnólogo franco-belga... Adoentado, e essa condição dá uma “pausa” ao seu agitado modo de ser e permite a introspecção, perguntava a si mesmo se tudo o que vivenciara na África teria valido a pena...
(...)
Kapuscinski foi transferido para a Polônia, onde prosseguiu o tratamento em hospital localizado à Rua Plocka, em Varsóvia...
Ele apresenta breve relato sobre o abarrotado ambiente em que foi instalado: dois dos internados que, estavam acomodados em camas próximas à sua, faleceram; os demais se encontravam em lastimáveis condições e, quando não emitiam grunhidos e gemidos dolorosos, conversavam sobre os tempos de guerra ou dormiam embalados por roncos estrondosos.
Pela janela, os que conseguiam se aproximar, podiam ver “um pátio sem vida, o necrotério, um céu sempre cinzento e desprovido de sol e uma arvorezinha desnuda”.
(...)
No início de 1967, Kapuscinski voltou ao trabalho...
Sentiu-se completamente desambientado no prédio da redação... Os demais funcionários não se interessavam por ele... Ele também não via motivos para conversar sobre sua experiência como correspondente na África.
A esse respeito, entendia que sua estada nas longínquas terras continente abaixo do Mediterrâneo o libertara daquela “estrutura mecanizada” que era a agência para a qual havia retornado... Seu regresso ao escritório rendeu-lhe apenas mal estar.
Os assuntos que o pessoal discutia nas rodas de conversa não lhe diziam respeito. Ele não tinha palavras que pudesse trocar sobre os programas de televisão ou a respeito das curiosidades da vida dos artistas mais famosos sobre os quais comentavam...
(...)
Não havia como a situação se reverter...
Quanto mais ouvia diálogos pontuados por futilidades, mais Kapuscinski se sentia angustiado... Os companheiros de escritório passavam preciosos momentos discutindo sobre as viagens à Bulgária, as melhores férias e até sobre as oportunidades de faturar dinheiro nessas ocasiões...Não foram poucas as vezes em que, visto perambulando pelas calçadas da cidade, perguntaram-lhe a respeito do que ele andava fazendo no país, sobre quando partiria novamente e para onde seria enviado... Nessas situações, sentia-se como estrangeiro na própria pátria.
Não era incomum um correspondente da PAP permanecer inativo por algum tempo após retornar de uma missão em outro continente... Eventualmente escalavam-no em substituição a algum repórter impossibilitado de trabalhar ou para “aliviar” outro que estivesse atarefado demais. Mas não atribuíam nenhuma tarefa a Kapuscinski.
Foi o chefe Hofman que resolveu engajá-lo num cotidiano “diferente”, que não fosse o da “monotonia da redação”... Estava claro que ele não pretendia envolvê-lo em novas missões arriscadas, e por isso resolveu colocá-lo atrás de uma escrivaninha numa sala onde seria auxiliado por uma secretária datilógrafa.
O efeito que a sala provocou no ânimo de Kapuscinski não foi o que Hofman esperava. O autor de “A Guerra do Futebol” tinha horror às escrivaninhas, e a sala colocada à sua disposição despertou em seu interior toda a aversão que sentia pelo “burocratismo”.
(...)
O polonês dispensou alguns parágrafos para tecer considerações sobre o móvel que considerava símbolo de decadência... Não se conformava com os tipos que ambicionavam a condição de “funcionários de escrivaninhas”.
De certo modo, criticava o governo que abarrotava departamentos públicos de “escrivaninhas ratoeiras”, como aquela que o seu chefe lhe entregara. Diferentemente dos demais, ele não considerava que um móvel pudesse tornar a pessoa mais digna... Em sua opinião, os tipos que se sujeitavam a permanecer por longas horas numa escrivaninha assumiam feições típicas dos “inválidos”.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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