A decisão de Henri (de dar o falso testemunho livrando Mercier da prisão, e salvando Lucie e Josette Belhomme de futuras implicações com a Justiça) era um indicativo do quanto estava mergulhado num enredo totalmente desvinculado de seu passado antifascista.
Pelo visto não haveria volta... Então não tinha sentido escrever para Dubreuilh ou procurar Lambert para uma conversa franca... Não ter amigos significava viver confortavelmente sem a necessidade de “prestar contas“... Era preciso “estar só” para seguir a passos largos até o juiz instrutor.
(...)
Algumas providências tiveram
de ser tomadas...
Henri estava “dando de ombros” ao próprio futuro...
Ele não era ingênuo ao ponto de desconsiderar que o falso testemunho pudesse
ser revelado... Seu nome ainda poderia ser utilizado por gaullistas e
comunistas nas polêmicas que certamente viriam.
Com decisão, procurou o advogado Truffaut para combinar a “carreira de
duplo agente de Mercier”. Depois do acerto, restava sair-se bem na dramatização
do papel a que se dispôs.
(...)
Ao colocar em cena o seu prestígio, saiu-se muito bem.
No gabinete do juiz, declarou com convicção que “um agente bilateral”
tem de dar garantias ao inimigo... Com desenvoltura, explicou ao juiz que tudo
era combinado com ele... Assim, Mercier jamais se dirigiu aos alemães sem que
as informações fossem discutidas entre ambos...
Henri disse muito mais... Garantiu que Mercier jamais deixara escapar
para os alemães qualquer atividade que pudesse comprometer a Resistência... O
próprio L’Espoir só podia circular clandestinamente por causa da atuação do
acusado.
Mercier ouviu o depoimento e comportou-se exemplarmente, como se fosse
mesmo um dos camaradas que lutaram contra a ocupação...
(...)
O sorriso de Mercier deixou Henri irritado porque no fundo ele sabia
que, por causa dele e de tipos como ele, Borel, Fauchois ou tantos outros
haviam caído nas mãos dos nazi... Mas Henri não podia ficar pensando sobre a
sorte de Mercier, que sobreviveria rico e feliz... Seu testemunho estava
proporcionando essa grande injustiça, e era para isso que ele estava ali.
(...)
O juiz não estava
totalmente convencido...
Disse que em algum momento
Mercier teria passado para o lado inimigo e, assim, tornou-se traidor.
O oficial de justiça
trouxe à sala as duas que o acusavam... Henri não as conhecia, mas sabia que elas
tinham passado cerca de um ano em Dachau. Yvonne parecia recuperada
fisicamente; Lisa Peloux se apresentava muito abatida, pálida e magra... Ele
soube imediatamente que teria de mentir diante delas se pretendesse levar o seu
jogo em frente.
(...)
Yvonne repetiu o depoimento de acusação sem deixar de olhar para os
olhos de Mercier. Em síntese, ela explicou que às duas horas da tarde de 23 de
fevereiro de 1944 se encontrou com Lisa na ponte de Alma... Mas foram
surpreendidas por dois soldados alemães que foram encaminhados ao local pelo
acusado...
Yvonne ofereceu detalhes a
respeito da aparência de Mercier e do casaco marrom que vestia na ocasião...
Henri foi taxativo ao garantir que elas só podiam estar enganadas em relação à
pessoa que as havia delatado porque naquela data específica Mercier estava com
ele em La Souterraine... Disse que os dois tinham passado o dia com outros
companheiros que iriam lhes passar o plano de soldados americanos sobre os
entrepostos que estes construíram alguns dias depois.
As duas insistiram que tinham certeza de que o delator
era exatamente aquele que estava diante delas... O juiz quis saber se Henri
tinha certeza em relação à data... Ele deu seu testemunho sem pestanejar ao
declarar sob juramento que “o bombardeio foi no dia 26; as indicações foram transmitidas
no dia 24”... E que nos dias 22 e 23 de fevereiro eles estiveram juntos em La
Souterraine...
(...)
Pobres moças... Elas insistiam que foram presas no dia 23... Henri
interveio garantindo que elas não podiam ter certeza a respeito do delator, já
que o tinham visto por breve instante... Ele, ao contrário, podia confirmar que
conhecia Mercier muito bem porque tinha trabalhado por dois anos com ele e,
sendo assim, tinha razão ao afirmar que elas só podiam ter sido entregues por
outra pessoa.
Yvonne e Lisa tornaram-se confusas... Elas tinham
certeza a respeito da acusação que faziam, mas também tinham plena confiança em
Henri... Yvonne argumentou que talvez o irmão gêmeo de Mercier tivesse feito o
trabalho sujo, porém o juiz esclareceu que ele não possuía nenhum irmão.
Henri sentenciou que o tempo que passou desde aqueles acontecimentos
levou-as a associar a fisionomia de Mercier à do delator... O juiz quis saber
se as duas mantinham seu depoimento... Manter a acusação seria colocar em dúvida
o depoimento de Henri...
Elas concordavam que deviam retirar a acusação.
(...)
Henri leu mais de uma vez as folhas sobre o seu depoimento... Sem dúvida
pensou sobre o horror que aquilo significava...
Teve vontade de seguir
Yvonne e Lisa no momento em que deixavam a sala... Mas pensou que nada teria a
lhes dizer...
Assinou os papéis e se retirou.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/06/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-de.html
Leia: Os
Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto