quinta-feira, 25 de setembro de 2014

“Androides sonham com ovelhas elétricas?”, de Philip K. Dick – campanha estatal pela emigração para as colônias espaciais; J.R. Isidore, “especial” e “cabeça de galinha”; silêncio devastador

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/09/androides-sonham-com-ovelhas-eletricas_24.html antes de ler esta postagem:

A TV de J.R. estava sintonizada sempre no mesmo canal, que era o que pertencia ao governo desde a guerra terminus... O “programa de colonização espacial” do governo era o único anunciante e é por isso que não havia alternativa senão a de ouvir a empolgada campanha...
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Na sequência ouvimos a senhora Maggie Klugman, recém-chegada a Marte. Como não podia deixar de ser, a dona falava que a vida de sua família havia mudado para melhor condição... Em Marte, na colônia denominada Nova York, seu pessoal se sentia mais digno... O locutor quis saber se enquanto viviam na Terra se preocupavam com a possibilidade de se tornarem “especiais”... Sem pestanejar, a mulher emendou no mesmo instante que “morriam de preocupação”, porém, depois que emigraram, podiam se sentir aliviados para sempre...
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Isidore desprezava aquela conversa e pensava que também para ele aquela preocupação havia passado “para sempre” sem que precisasse emigrar... Já fazia mais de um ano que ele vivia como um “especial”... Todos sabiam que seus genes estavam corrompidos e, para completar o quadro degenerativo, J.R. não havia passado no “teste de faculdade mental” e, por isso mesmo, também era classificado como “cabeça de galinha”.
Apesar de desafortunado, Isidore levava existência comprometida com um trabalho regular... Era motorista de picape e caminhão para o Hospital Van Ness para Bichos de Estimação, uma empresa que consertava animais falsos danificados... Ele contava com a estima do senhor Hannibal Sloat, o proprietário, um tipo “gótico” que considerava J.R. mais bem preparado do que a maioria dos “cabeças de galinha”.
Enquanto a maioria dos “cabeças de galinha” dependia de serviços de assistência como o “Instituto de Habilidades e Ofícios de Especiais da América”, Isidore sentia-se útil em seu trabalho... O patrão o via como um humano (nada mais que isso) enquanto pronunciava a sua máxima “mors certa, vita incerta”, que J.R. evidentemente não sabia o que significava (se soubesse não seria um “cabeça de galinha”!).
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Do aparelho de televisão, a voz da senhora Klugman prosseguia com sua “apologia da colonização espacial”... Ela respondia a respeito da necessidade de usarem o “protetor genital de chumbo à prova de radiação” enquanto viviam na Terra... Mas J.R. desligou a TV.
Interromper a transmissão significava restaurar um silêncio arrebatador no edifício “vazio e decadente”.
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Tudo à volta de Isidore lembrava que ele se tratava de um tipo exprimido pela solidão e pelo silêncio que “suplantava todas as coisas tangíveis” (o carpete esfarrapado, os inúteis utensílios da cozinha, os aparelhos que jamais foram colocados em funcionamento desde que ele chegara ao lugar...).
Se naquele mundo assolado pela destruição havia algum vencedor, este era o silêncio... J.R. ficou a imaginar se os demais remanescentes no planeta tinham a mesma percepção ou se aquilo era próprio dos que sofriam limitações biológicas semelhantes às suas...
Mas nem a esse respeito valia a pena refletir, pois não havia com quem conversar...
O imenso prédio vazio se transformaria no futuro em um “grande bagulho parecido com um pudim empilhado até o teto de cada apartamento”...
A edificação um dia ruiria, se tornaria pó...
Mas quando isso viesse a ocorrer ele próprio já não existiria.
Leia: Androides sonham com ovelhas elétricas? Editora Aleph.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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