O dia de Rick Deckard teve início com uma “curta e gostosa onda elétrica” disparada pelo alarme do “sintetizador de ânimo”... Acordou satisfeito e “de bem com a vida”. Iran, a esposa, abriu apenas um dos olhos e como que a reclamar foi dizendo que regularia o “penfield” do marido... Deckard protestou exigindo que ela não mexesse em sua programação... Falaram algo a respeito da afinação (dó ou ré) e ele arrematou que não tinha intenção de, com uma onda de nível mais alto, “ficar feliz ao acordar”... Bastava-lhe o ajuste que havia determinado.
(...)
Iran era um tipo deprimido e amargo também... De modo ríspido, exigiu
que Rick tirasse sua “mão suja de policial” de seu ombro... De sua parte, apesar
de haver acertado o seu “programador de ânimo” para uma condição amistosa,
acabou se irritando ao garantir que não se tratava de um tira...
(...)
O diálogo que dá início ao
livro permite-nos conhecer a identidade profissional de Deckard... Iran dispara
que ele é pior do que um tira, já que na verdade era contratado pela polícia
para cometer assassinatos... Deckard garante que jamais matara um ser humano, e
a esposa (como que a dizer que dava no mesmo) arremata que as vítimas do marido
eram os “pobres andys” (andys = androides).
Na sequência da discussão vemos Rick se defender
dizendo que ela nunca reclamou do dinheiro que ele trazia para casa...
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Então é isso, o tipo obtinha recompensas pela eliminação de androides.
Enquanto justificava a sua
labuta, questionava a postura de Iran, que não se preocupava em economizar
dinheiro para poderem comprar uma ovelha de verdade... Deckard queria que ela
entendesse que o dinheiro que recebia pelo trabalho podia ser investido na
troca da ovelha elétrica que possuíam (fizemos um breve relato na postagem
anterior a respeito dessa ambição)...
(...)
A conversa descambara para a agressão verbal, e
Deckard pensou se deveria ajustar o seu “sintetizador de ânimo”... Se quisesse,
poderia eliminar a própria raiva escolhendo um “supressor talâmico”... Se
escolhesse o “estimulador talâmico”, sua irritação seria suficiente para
“vencer a discussão”.
Iran percebeu o vacilo do marido e dirigiu-se imediatamente para o seu
aparelho garantindo que, se ele estimulasse a própria irritação, ela
posicionaria o dela na posição máxima...
No entanto, Iran fez a ameaça e apenas o encarou.
(...)
Deckard deu-se por vencido e garantiu que escolheria o que havia
registrado na própria agenda para aquele dia (3/janeiro/1992 – o texto é de
1966)... Quis saber se a esposa também ajustaria o seu ânimo sem levar em
consideração aquele desacordo matinal.
Ela respondeu que a sua programação para aquele dia era uma “depressão
autoacusatória de seis horas”...
Rick estranhou que o
aparelho oferecesse aquela opção esdrúxula, e mais ainda que alguém pudesse
escolher ficar deprimido em vez de animado.
Então Iran contou-lhe
que numa ocasião ouvia o programa do “Buster Gente Fina e Seus Amigos Gente
Boa”, quando o apresentador anunciou que divulgaria uma notícia muito
importante... Mas, antes da revelação, a televisão passou a tocar a propaganda
que ela mais detestava (do protetor genital de chumbo Mountibank)... Por isso
ela desligou o aparelho, o que possibilitou-lhe ouvir sons vindos dos
apartamentos vazios do antigo conjunto residencial...
Rick entendeu o que a esposa estava dizendo... Ele mesmo já ouvira os
deprimentes sons dos condomínios que, antes da guerra, eram de ocupação
elevadíssima... Mas nunca se interessou em investigar o que se passava por lá.
Iran continuou a se
explicar e disse que no momento em que havia desligado a televisão estava no
estado de espírito 382... Ouviu o vazio, mas não conseguiu senti-lo...
Lembrou-se de agradecer por terem um “sintetizador Penfield” (talvez uma
referência aos potenciais equipamentos medicinais que poderiam ser
desenvolvidos a partir das pesquisas de Wilder Penfield no campo da
neurociência)... Mas ao mesmo tempo constatou que sua situação podia ser
doentia, já que podia perceber a “ausência de vida” no prédio (e em tudo à sua
volta) sem “reagir a nada”.
(...)
O que Iran queria dizer é que aquilo (“ausência de
afeto adequado”) podia ser um sintoma de doença mental... Na ocasião fez vários
testes no simulador e descobriu um ajuste para “desilusão”... Desde então ela
programava esse sentimento duas vezes por mês... Assim podia se sentir
desiludida em relação a tudo, inclusive em relação a ter permanecido na Terra
enquanto a maioria (a “ralé”) emigrou.
Rick a alertou que um ajuste daqueles poderia provocar uma permanente
desilusão... A mulher respondeu que programava o aparelho para três horas e que
ele mudava para o estado de espírito 481 automaticamente... Ele disse que
conhecia o 481, que inspirava algo como “esperanças futuras”, mesmo assim
garantiu que a interrupção automática não significava nenhuma garantia quando a
condição da pessoa era de depressão.
Demonstrando preocupação com a esposa, Rick sugeriu que ambos digitassem
um 104... Depois ele trocaria para o mais adequado à sua atitude profissional,
subiria para checar a ovelha e seguiria para o escritório... Disse essas coisas
enquanto detinha as mãos de Iran entre as suas...
Na sequência encaminhou-se para a ampla sala,
onde ligou a televisão... Do quarto, Iran reclamou que não suportava TV antes
do café da manhã... Rick sugeriu que ela sintonizasse o 888 no “penfield”, pois
isso incutiria nela a vontade de assistir a programação sem se importar com
conteúdo... Era só o tempo de a válvula da TV esquentar (como se vê, talvez
propositalmente, PKD não previa – ou não imaginava - a evolução técnica desse
aparelho).
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/09/androides-sonham-com-ovelhas-eletricas_43.html
Leia: Androides sonham com ovelhas elétricas? Editora Aleph.
Um abraço,
Prof.Gilberto