quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

As Memórias do Livro, de Geraldine Brooks

Talvez seja interessante você ler http://aulasprofgilberto.blogspot.com/2011/01/hagada.html antes das linhas abaixo:

Na primeira semana deste ano li As Memórias do Livro, de Geraldine Brooks. O texto é fictício, mas faz referências a episódios verídicos que envolvem a História dos judeus, sua diáspora e perseguições sofridas pelo mundo afora em tempos diversos. Isso inclui a Inquisição e o Nazismo, além do esfacelamento da ex-Iugoslávia no início da década de 1990. O texto ressalta que tantos conflitos, porém, foram também marcados pela solidariedade e integração das várias identidades culturais, demonstrados por homens e mulheres que manifestavam reconhecido apreço pela História, estudos e rituais religiosos umas das outras.

No começo do livro, a especialista em documentos antigos, Hanna Heath, recebe a incumbência de fazer uma verificação de autenticidade de uma Hagadá manuscrita em pergaminho datada do século XV. A guerra da Bósnia estava em seus momentos finais e a ONU esperava apresentar o manuscrito em grande evidência para, além de reerguer o moral das populações locais, demonstrar que a paz, enfim, estava se confirmando. O especialista Amitai Yomtov sugeriu ao Organismo internacional que Hanna se encarregasse da importante tarefa.

Essa Hagadá de Sarajevo tem a característica diferenciada de apresentar iluminuras como os livros que os mosteiros cristãos medievais produziam. Isso é algo sui generis porque esse tipo de arte era suprimido dos textos produzidos pelos judeus. Esse manuscrito estava desaparecido do Museu Nacional durante a Guerra da Bósnia. Na verdade a Hagadá havia sido colocada a salvo, em segurança, pelo bibliotecário chefe do museu, o jovem professor muçulmano Ozren Karaman.

A partir da investigação que a especialista faz, temos uma verdadeira aula sobre a pesquisa de documentos antigos. Enquanto a maioria considera que os documentos são objetos para restauração, Hanna é pela conservação e procura interferir o mínimo possível nesse tipo de relíquia histórica. Nos debates que ela desenvolve com Karaman, compreendemos que o estudo de um manuscrito antigo envolve muito mais do que conhecer a época em que foi produzido, a sociedade e o conteúdo revelado por ele. Diversas outras disciplinas (como a Geografia, a Biologia e a Química) são acionadas para contribuir no desvendamento de questões que surgem com a apreciação do objeto.

Em sua análise inicial do manuscrito, Hanna decide coletar com muita delicadeza amostras de alguns elementos que encontra nas páginas que manuseia (uma asa de inseto; um pelo branco; uma borra vermelha, que pode ser de vinho ou sangue; cristais de sal, talvez de água do mar...).

Com a colaboração dos colegas acadêmicos e de seus exames laboratoriais, Hanna descobre que a asa de inseto só pode ser de uma borboleta Parnassius, cujo habitat é dos Alpes, o que indica que o manuscrito estivera nas altas altitudes; o pelo branco não era um fragmento de cabelo de alguém que tivesse manuseado o manuscrito, mas sim um pelo de felino (da região do pescoço de gatos extraíam pelos para a confecção de pincéis); a borra vermelha era mesmo de vinho; o exame dos cristais de sal indicou que o manuscrito estivera no mar.

A sequencia de capítulos de As Memórias do Livro narra uma espetacular trajetória que o livro manuscrito poderia ter sofrido. Os cenários, personagens e contextos estão inseridos no recorte da História da Humanidade que vai desde a época em que o manuscrito foi confeccionado (1480, Sevilha) na Espanha da época em que esse país estava sendo unificado graças ao casamento dos reis católicos Fernando e Isabel (1492) e saindo das Guerras da Reconquista contra os mouros, passa pelo período da Inquisição e pelas perseguições católicas (a Igreja selecionava os livros que constariam do Index, a relação dos livros que deveriam ser queimados por serem considerados “impróprios” à leitura dos cristãos); o livro manuscrito teria passado ainda por perigos em Veneza (ao fim do texto em hebraico há uma linha em latim na qual se lê Revisto per mi. Gio. Domenico Vistorini, 1609); Viena (1894), onde teria sido restaurado; e finalmente em Sarajevo (1040/1996), onde permanece.

Pois bem. Em cada uma dessas passagens conhecemos um pouco mais da História e dos sofrimentos pelos quais os judeus passaram. A narrativa fictícia leva-nos a personagens que sofriam perseguições e a outros intolerantes perseguidores. Descobrimos, então, como foi que aqueles elementos encontrados por Hanna em sua investigação chegaram às páginas do manuscrito... Legal, não é? Para conhecer é preciso ler o livro na íntegra... Assim você dialogará com várias personagens que se encaixam perfeitamente nesse passado.

Há algumas “tramas” paralelas à narrativa sobre “as memórias do livro”. Para o Romance elas são importantes: Hanna transita entre Sarajevo, Estados Unidos e Austrália; ela não tem um relacionamento amistoso com a mãe, a Doutora Heath, uma experiente e internacionalmente reconhecida neurocirurgiã; Hanna não conheceu o pai, mas a narrativa trata de apresentá-lo (um artista plástico australiano, Sharansky, de grande destaque na primeira metade do século XX), aos poucos ela vai descobrindo as suas origens; Hanna acabou se envolvendo física e emocionalmente com o professor Ozren Karaman e com seus problemas pessoais (a mulher e o filho vitimados pelos conflitos em seu país); o doutor Franz Hirschfeldt, que foi professor de Hanna, e Amitai Yomtov, especialista como Hanna, tem importante papel nas investigações do manuscrito e em seu destino final.

Um abraço,
Prof.Gilberto
Leia: As Memórias do Livro. Ediouro Editora.

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