No dia seguinte ocorreu o julgamento de Ingratidão do Tuga. Os guerrilheiros que estavam na Base participaram, puderam ouvir a acusação, a defesa e também se manifestar a respeito do caso do roubo dos cem escudos do mecânico.
Ingratidão confessou o roubo... Os camaradas falaram sobre o que pensavam a respeito. De um modo geral condenaram o procedimento do réu. Alguns deles, como Teoria e Ekuikui, se dispuseram a fazer referências a certas atenuantes que o levaram ao crime.
Por fim foi o Comando que, reunindo-se separadamente, teve de tomar a decisão.
(...)
O
Comissário pôs-se a falar ressaltando que a “Lei da Disciplina” que vigorava nas
diversas regiões de atuação da guerrilha previa a punição de fuzilamento.
Depois o oficial arrematou que nada mais tinha a dizer, pois para ele estava
claro que Ingratidão do Tuga devia ser fuzilado por ter roubado alguém do povo
e por prejudicar consideravelmente a relação do movimento revolucionário com os
civis.
Sem Medo e o Chefe de
Operações ouviram as palavras do Comissário em silêncio... O Chefe de Operações
manipulou o seu canivete por um bom tempo e quando parou fez seu
pronunciamento... Disse que o Comissário Político havia sido muito duro em suas
considerações e que era preciso levar em conta que o povo já se manifestara contra
o MPLA em diversas ocasiões. Como esquecer da traição dos civis que resultara
na morte de vários guerrilheiros? Era preciso considerar que muitos combatentes
tinham reservas em relação à gente de Cabinda.
O
oficial destacou que não podiam mesmo apoiar os crimes que eventualmente os
camaradas sentiam vontade de praticar... Mas, em sua opinião, não podiam
descartar que as “razões anteriores” (a traição do povo) tornavam “menores” os
erros dos guerrilheiros.
O Comissário sentiu
necessidade de debater... Então argumentou que a traição do povo em tempos
passados até se justificava por não estar politizado. Citou certo Taty, que se
prestou a enganar a população dizendo que os imperialistas mudariam sua
política e que os rebeldes só atrapalhavam sua aplicação ao fazerem a guerra.
Insistiu que Ingratidão do Tuga havia sido devidamente instruído sobre como
tratar a gente do povo.
O oficial que cuidava
da politização de rebeldes tinha a preocupação de manter uma imagem positiva do
movimento em meio às aldeias e disse que as tais “razões anteriores” aludidas
pelo Chefe de Operações não justificavam o grave erro do réu. Eram erros como
aquele que prejudicavam o bom entendimento com o povo... Ele ainda citou o
tribalismo como problema interno da guerrilha, algo que certamente prejudicava
a disciplina entre os camaradas e inviabilizava as mudanças que o movimento almejava.
(...)
Enfim Sem Medo fez
sua intervenção... Dirigiu-se diretamente ao Comissário Político salientando sua
juventude e a natural inflexibilidade. Apresentou alguns questionamentos a
respeito de hipotéticas infrações dos camaradas em relação ao movimento revolucionário...
Citou o caso de “roubo de dinheiro do Movimento” e cravou que qualquer um que
cometesse esse crime seria fuzilado. Lembrou que menhum caso do tipo havia
ocorrido!
Depois perguntou o
que devia ser feito caso algum dos homens se recusasse a retornar para a
Base... Explicou que o tipo seria mantido preso por algum tempo e depois seria expulso.
Mas era preciso refletir! O que realmente se sucedia ao infrator? Passaria uns
quinze dias detido e depois iria para Dolisie como refugiado!
Havia muitos outros exemplos que o Comandante desejaria citar... Eles
foram suficientes para destacar a discrepância da sentença que o Comissário pretendia
aplicar ao Ingratidão do Tuga.
(...)
Como vemos, Sem Medo não concordou com o encaminhamento defendido pelo
Comissário. Para ainda mais justificar o seu ponto de vista, ele ressaltou que
havia “indisciplina” de militantes que estavam fora das zonas armadas (os
refugiados). E que isso influenciava a indisciplina entre os camaradas combatentes!
Para ele, o Comando devia refletir se, de fato,
a Região estava “funcionando bem”... Além disso, Ingratidão do Tuga não era
qualquer guerrilheiro! O camarada havia lutado no norte entre 1961 e 1965! Depois
foi encaminhado para Cabinda, onde permanecia. Seu histórico de luta armada já
somava uns dez anos!
Ainda na defesa do
réu, o comandante Sem Medo admitiu que o rapaz não possuísse formação política
sólida. Quis saber quem entre os homens na Base possuía essa formação e
ressaltou que ninguém poderia culpá-los por isso já que os “exemplos vinham de
cima”.
Sem Medo olhou diretamente para o Comissário e sentenciou que ele também
não devia se sentir culpado pela deficiência na formação política dos camaradas.
Admitiu que isso podia acontecer, já que entre todos era o responsável pelo
embasamento que os guerrilheiros deviam ter. Mas o que mais ele podia fazer
para mostrar a um tipo como o Ingratidão que a gente de Cabinda era como toda
Angola?
O
Comandante queria que o Comissário entendesse que a mudança no entendimento dos
guerrilheiros ocorreria apenas na prática. Concomitantemente às lutas havia
apenas os discursos do formador político. E isso era pouco! Sendo assim, não
era justo fuzilar um Ingratidão do Tuga que não tivera melhores condições de
apreender o que o Comando tentava ensinar sobre a realidade do país e do povo.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2018/07/mayombe-de-pepetela-sem-medo-faz-relato.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto