Talvez
seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_28.html antes de ler esta postagem:
No dia 7 de fevereiro de 1584, Menocchio falou
que no princípio havia um caos... Os elementos terra, ar, fogo, ar e água eram
misturados... Na ocasião em que o moleiro discorria sobre as viagens de
Mandeville, o vigário-geral quis saber se o livro não tratava do caos... Mas o
interrogado respondeu que sobre isso havia lido no Fioretto della Bibbia...
Ginzburg explica que o Fioretto não trata exatamente desse caos
aludido por Menocchio. Em seu capítulo IV (Como
Deus criou o homem a partir dos quatro elementos) lê-se que no princípio
Deus fez uma “grande matéria” sem forma... A fez em tal quantidade que dela
podia “tirar ou fazer” o que quisesse... E foi dela que “retirou o homem
formado”. Ginzburg revela aí que Elucidarium,
de Honório d’Autum pode ter sido sua fonte para essas interpretações, já que
este texto aglutina metafísica com astrologia, e teologia com a “doutrina dos
quatro temperamentos”.
Caos é um termo, no mínimo,
desconhecido pelas pessoas comuns que faziam parte dos círculos de Menocchio...
O Fioretto não trata exatamente de
caos e outra possibilidade (mais provável) é que ele conhecesse a ideia a partir
de Supplementum Supplementi delle
croniche, do ermitão Jacopo Foresti, em que se lê sobre a teoria de que o
princípio do planeta teria sido marcado por matéria ”grande e indigesta”, “incerta
e inerte”, que reunia “num mesmo círculo” as sementes “discordantes de coisas
não bem combinadas”. Ovídio e vários filósofos chamam a essa realidade de
caos... Em Supplementum, Foresti
apresenta uma cosmogonia que se aproxima dessa teoria... Deus existia em
potencial nesse caos e, a partir dele, criou tudo o que existe.
Tendo-se apropriado dessas ideias, Menocchio sentiu-se impulsionado a
ensiná-las a todos os que cruzavam o seu caminho... Depoimentos colhidos
durante os processos dão conta de que ele explicava que “o mundo era nada” no
princípio e que a água do mar (de tanto que se agitou) formou densa espuma...
Tal como o queijo se forma do leite e dá origem a vermes... Daquela situação
primordial teriam se formado os humanos, dentre os quais Deus que, sendo mais potente
e sábio, exerceu poder sobre os demais (que lhe dedicaram obediência).
Os juízos expressos
no parágrafo anterior não podem ser atribuídos em sua íntegra e sentido a
Menocchio. É que Povoledo (que foi quem deu esse testemunho) relatou o que
ouvira de um amigo “oito dias antes”, “caminhando pela rua, indo para o mercado
de Pordenone”... Esse amigo teria contado o que ouviu de um conhecido que “havia
falado com Menocchio”.
Ginzburg ressalta que, em
seu primeiro interrogatório, Menocchio não falou exatamente naqueles termos...
Disse que, de acordo com o seu pensamento, tudo era um caos... E que todo
aquele volume em movimento “resultou numa massa, assim como o queijo se faz do
leite”, “e do qual surgem os vermes”, e esses seriam os anjos... Deus também
teria sido criado daquela massa e no mesmo momento... Deus teria sido o mais
potente dos “anjos-homens”... Essa ideia e a ideia de caos (como afirmado
anteriormente, desconhecida pelas pessoas comuns com as quais Menocchio
convivia) haviam sido modificadas e não expressavam com exatidão o “pensamento
de Menocchio”... O “modo Menocchio de pensar” foi passado e repassado pelas conversas...
As autoridades inquisitoriais ouviram, então, que o processado havia dito que “no
princípio este mundo era nada”... Também a “metáfora da espuma formada a partir
da água do mar em constante movimento contra as praias e rochedos” não fazia
parte do enredo narrado pelo moleiro.
O vigário-geral quis saber
o que era a “Santíssima Majestade” que aparecia na cosmogonia de Menocchio...
Ele respondeu que a entendia como o “Espírito de Deus, que sempre existiu”...
Em outra ocasião explicou que, no dia do Juízo, todos “serão julgados por
aquela Santíssima Majestade (...) que existia antes que existisse o caos”... Os
depoimentos de Menocchio seguiam mesclando Deus, Santíssima Mejestade e
Espírito Santo, mas a essência de sua cosmogonia permanecia... É claro que essa
interpretação suscitava muita curiosidade e interrogações das autoridades, que
queriam saber de Menocchio se Deus sempre estivera no caos... A isso o
interrogado respondeu afirmativamente e confirmou que acreditava que nunca
estiveram separados, “nem o caos sem Deus, nem Deus sem o caos”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/12/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_16.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto