Teodorico foi ao quarto para pegar as lembrancinhas que trouxe para os amigos da tia Patrocínio... Quando retornava à sala com as “devotas preciosidades” envolvidas num lenço, ouviu o seu nome pronunciado pelo doutor Margaride, que estava conversando com a velha... Então decidiu parar atrás de uma divisória para ouvir.
Em síntese, o homem falava que a casa agora abrigava um verdadeiro cavalheiro... Ele não quis dizer isso diante dele e dos demais, mas, em sua opinião, Teodorico se tornara um “amigo íntimo de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
(...)
O rapaz tossiu para mostrar que estava se aproximando... Assim que o viu
com as santas encomendas, Dona Patrocínio mostrou-se enciumada e disse que
talvez fosse do agrado de Nosso Senhor que, antes de os demais receberem
aquelas “relíquias mínimas”, lhe fosse entregue na capela a “grande relíquia”.
Ela
disse isso e na sequência revelou que todos deviam saber que o seu sobrinho
havia lhe trazido uma “santa relíquia”. Entusiasmada, anunciava que a partir de
então recorreria a ela para buscar o remédio para todas as suas aflições.
O empolgado doutor
Margaride gritou um “bravíssimo!”... E não foi sem uma ponta de orgulho que deu
a entender que aquilo só podia ser o resultado dos conselhos que havia dado ao
romeiro antes de sua partida para a Terra Santa.
O
padre Pinheiro, que estava diante do espelho a examinar a própria língua, disse
que não havia em todo Portugal sobrinhos como aquele... O tabelião Justino
achou que devia acrescentar elogios e gritou que os modos de Teodorico eram os
de um “filho devotado à mãe”.
O padre Negrão
finalizou a bajulação dizendo que restava saber qual era a preciosa relíquia
que o jovem trouxera para a amada Dona Patrocínio. No mesmo instante, Teodorico
teve vontade de esmurrar o desafeto e o fitou com olhos agressivos. Não deixou
o tipo sem resposta e disse que era bem provável que o religioso (e fez questão
de destacar: caso fosse mesmo “um verdadeiro sacerdote”) se atirasse “de
focinho” para o chão e rezaria assim que visse a maravilha que ele trouxera
para a tia.
Virando-se para a
Dona Patrocínio, Teodorico disse que logo todos poderiam contemplar a santa
relíquia no oratório. Acrescentou que o sábio Topsius havia garantido que, assim
que a preciosidade fosse revelada, a família inteira se emocionaria.
(...)
De fato, a velha não
conseguia dominar a emoção... Levantou-se de sua cadeira e colocou as mãos
sobre o peito.
Teodorico sentiu que
o momento era propício, então retirou-se novamente... Dessa vez para
providenciar um martelo.
Quando retornou, viu o Margaride com suas luvas pretas... Atrás dele
estava a dona da casa. Os panos de sua veste conferiam-lhe aspecto
eclesiástico.
Em silêncio, caminharam pelo corredor... O som do bico de gás dominava a
atmosfera... Vicência e a cozinheira colocaram-se a um canto, onde desfiavam
seus rosários.
O oratório estava resplandecente... As velas de
cera faziam a prataria brilhar. As túnicas que vestiam as imagens eram de um
lustro fenomenal. Os santos pareciam regozijados... O momento tornava a noite
gloriosa.
Teodorico olhou para
a cruz que prendia o “Cristo de ouro”... Gostou de ver mais uma vez que tudo
ali reluzia. Foi o doutor Margaride quem tomou a palavra que melhor definia o
que todos sentiam: “Tudo com muito gosto! Que divina cena!”
O rapaz adotou um aspecto mais piedoso... Acomodou o caixote sobre a
almofada de veludo... Curvou-se sobre ele e pronunciou um “Ave”. Na sequência,
retirou a toalha que o cobria e a pendurou num de seus braços. Pigarreou
discretamente.
Depois
iniciou um discurso sobre a preciosa relíquia que havia trazido para a sua
muito estimada tia... Explicou que ainda não a havia revelado porque estava
procedendo tal como lhe orientara o “senhor Patriarca de Jerusalém”.
Ressaltou que tudo o
que contemplariam era santo... E isso incluía o papel de embrulho, a fita que o
envolvia, a madeira do caixote, os pregos... Falou especificamente dos pregos,
garantindo que eles estiveram nas tábuas da Arca de Noé. Neste ponto chamou a
atenção do padre Negrão para que ele mesmo conferisse o estado corroído da
ferragem.
Certo
de que estava convencendo os ouvintes, sentenciou por fim que tudo o que
trouxera era “do melhor” e que a “virtude” escorria de todas as peças.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_24.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto