quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – Margaride convencido de que Teodorico se tornara “amigo íntimo de Nosso Senhor Jesus Cristo”; dona Patrocínio antecipa-se e revela a todos que há uma relíquia especial para ela; tudo "do melhor e virtuoso"; a casa se enche de solenidade e expectativa

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_81.html antes de ler esta postagem:

Teodorico foi ao quarto para pegar as lembrancinhas que trouxe para os amigos da tia Patrocínio... Quando retornava à sala com as “devotas preciosidades” envolvidas num lenço, ouviu o seu nome pronunciado pelo doutor Margaride, que estava conversando com a velha... Então decidiu parar atrás de uma divisória para ouvir.
Em síntese, o homem falava que a casa agora abrigava um verdadeiro cavalheiro... Ele não quis dizer isso diante dele e dos demais, mas, em sua opinião, Teodorico se tornara um “amigo íntimo de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
(...)
O rapaz tossiu para mostrar que estava se aproximando... Assim que o viu com as santas encomendas, Dona Patrocínio mostrou-se enciumada e disse que talvez fosse do agrado de Nosso Senhor que, antes de os demais receberem aquelas “relíquias mínimas”, lhe fosse entregue na capela a “grande relíquia”.
Ela disse isso e na sequência revelou que todos deviam saber que o seu sobrinho havia lhe trazido uma “santa relíquia”. Entusiasmada, anunciava que a partir de então recorreria a ela para buscar o remédio para todas as suas aflições.
O empolgado doutor Margaride gritou um “bravíssimo!”... E não foi sem uma ponta de orgulho que deu a entender que aquilo só podia ser o resultado dos conselhos que havia dado ao romeiro antes de sua partida para a Terra Santa.
O padre Pinheiro, que estava diante do espelho a examinar a própria língua, disse que não havia em todo Portugal sobrinhos como aquele... O tabelião Justino achou que devia acrescentar elogios e gritou que os modos de Teodorico eram os de um “filho devotado à mãe”.
O padre Negrão finalizou a bajulação dizendo que restava saber qual era a preciosa relíquia que o jovem trouxera para a amada Dona Patrocínio. No mesmo instante, Teodorico teve vontade de esmurrar o desafeto e o fitou com olhos agressivos. Não deixou o tipo sem resposta e disse que era bem provável que o religioso (e fez questão de destacar: caso fosse mesmo “um verdadeiro sacerdote”) se atirasse “de focinho” para o chão e rezaria assim que visse a maravilha que ele trouxera para a tia.
Virando-se para a Dona Patrocínio, Teodorico disse que logo todos poderiam contemplar a santa relíquia no oratório. Acrescentou que o sábio Topsius havia garantido que, assim que a preciosidade fosse revelada, a família inteira se emocionaria.
(...)
De fato, a velha não conseguia dominar a emoção... Levantou-se de sua cadeira e colocou as mãos sobre o peito.
Teodorico sentiu que o momento era propício, então retirou-se novamente... Dessa vez para providenciar um martelo.
Quando retornou, viu o Margaride com suas luvas pretas... Atrás dele estava a dona da casa. Os panos de sua veste conferiam-lhe aspecto eclesiástico.
Em silêncio, caminharam pelo corredor... O som do bico de gás dominava a atmosfera... Vicência e a cozinheira colocaram-se a um canto, onde desfiavam seus rosários.
O oratório estava resplandecente... As velas de cera faziam a prataria brilhar. As túnicas que vestiam as imagens eram de um lustro fenomenal. Os santos pareciam regozijados... O momento tornava a noite gloriosa.
Teodorico olhou para a cruz que prendia o “Cristo de ouro”... Gostou de ver mais uma vez que tudo ali reluzia. Foi o doutor Margaride quem tomou a palavra que melhor definia o que todos sentiam: “Tudo com muito gosto! Que divina cena!”
O rapaz adotou um aspecto mais piedoso... Acomodou o caixote sobre a almofada de veludo... Curvou-se sobre ele e pronunciou um “Ave”. Na sequência, retirou a toalha que o cobria e a pendurou num de seus braços. Pigarreou discretamente.
Depois iniciou um discurso sobre a preciosa relíquia que havia trazido para a sua muito estimada tia... Explicou que ainda não a havia revelado porque estava procedendo tal como lhe orientara o “senhor Patriarca de Jerusalém”.
Ressaltou que tudo o que contemplariam era santo... E isso incluía o papel de embrulho, a fita que o envolvia, a madeira do caixote, os pregos... Falou especificamente dos pregos, garantindo que eles estiveram nas tábuas da Arca de Noé. Neste ponto chamou a atenção do padre Negrão para que ele mesmo conferisse o estado corroído da ferragem.
Certo de que estava convencendo os ouvintes, sentenciou por fim que tudo o que trouxera era “do melhor” e que a “virtude” escorria de todas as peças.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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