sábado, 24 de fevereiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – expulso do casarão; noite no decadente hotel da Pomba de Ouro; conhecendo o senhor Lino

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O desfecho do projeto de Teodorico com a sua tentativa de engambelar a tia Patrocínio com a falsa relíquia foi o pior que se podia esperar. No lugar da coroa de espinhos, a camisa de dormir da Mary luveira!
Ficamos a imaginar o quanto ele se sentiu envergonhado diante dos conceituados e diletos amigos da velha.
(...)
Depois de ter sido chamado de “porcalhão”, retirou-se de fininho para o quarto e atirou-se na cama.
Ele sentiu a atmosfera de escândalo que tomou conta de todo casarão. Não demorou e Vicência apareceu para anunciar-lhe que a senhora Dona Patrocínio exigia que saísse imediatamente para a rua, pois não admitia sua permanência por “nem mais um instante” em sua casa.
Em silêncio, ele ouviu que devia sair com a “roupa branca” e todas as outras porcarias que ele havia trazido... Ainda atormentado pelos últimos acontecimentos, foi se levantando como um indolente. Então a criada mais o apressou, advertindo que a dona da casa estava disposta a chamar a polícia se ele não se retirasse imediatamente.
(...)
Não era um sonho... De fato, o seu “castelo” se transformara num drama real... Mas foi aos poucos que entendeu ele que não podia mais permanecer no imóvel que tanto desejara.
Confusamente, tomou um saco e saiu cambaleando a recolher coisas que julgava imprescindíveis para a decadente existência que se avizinhava... Chinelas, escova de dentes... Sua bagagem estava ali mesmo, então só teve o trabalho de abraçá-la... Nem reparou que entre as malas estava também um caixote com alças de ferro.
Retirou-se do casarão na ponta dos pés, como se fosse mesmo um cão escorraçado por sua malvada dona. Atravessou o pátio e logo Vicência trancou o portão, selando a sua expulsão.
Dali para frente era a rua e a solidão... Em meio à parca luz, verificou o dinheiro que lhe restava: “duas libras, dezoito tostões, um duro espanhol e cobres”. Foi só então que percebeu o caixote carregado “das relíquias menores”, ou seja, “tabuinhas aplainadas por São José, e cacos de barro do cântaro da Virgem”.
Colocou o caixote às costas e seguiu para o Hotel da Pomba de Ouro, na Baixa Lisboa.

(...)

Teodorico passou a noite no hotel miserável e de baixa reputação...
No dia seguinte, enquanto remexia uma “sopa de grão e nabo”, um sujeito de bigodes, que trajava colete de escuro veludo, posicionou-se diante dele e à mesma mesa.
O tipo trazia um exemplar de “A Nação”, no qual investigava anúncios específicos... Apresentou-se como Senhor Lino e, voltando-se para o próprio prato, fez uma espécie de agradecimento e umas observações a respeito do apetite que vinha nutrindo desde o “dia de reis”. Teodorico respondeu qualquer coisa relacionando o apetite ao que se tinha para comer. Disse isso ao mesmo tempo em que notava o amarelado dos olhos do homem, e daí concluiu que ele padecia de males hepáticos...
O senhor Lino ajeitou o guardanapo e com delicadeza perguntou se o rapaz vinha do norte do país... Teodorico levou as mãos aos cabelos e foi dizendo que acabara de chegar de Jerusalém.
A resposta assustou o sujeito, que até se atrapalhou com as garfadas... Quando “digeriu” a informação, disse que tinha muito interesse pelos lugares santos, pois era homem de religião.
(...)
Foi assim que os dois se conheceram...
O Senhor Lino explicou que era empregado na Câmara Patriarcal... Teodorico, que não tinha a menor ideia do que se tratava, emendou que conhecera o “senhor Patriarca de Jerusalém”, um cavalheiro muito respeitável e santo. Para não perder o hábito das mentiras, disse que se tornara próximo do referido patriarca.
O Senhor Lino se interessou pelas novidades que o Raposo trazia... Não demorou e ofereceu-lhe de sua garrafa de água... E em pouco passaram a conversar a respeito da Terra Santa.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – do constrangimento à confiança ; momento solene e de emoção de dona Patrocínio ao desatar a fita vermelha; a camisa de Mary sobre o sacro altar do oratório; de vergonha e repúdio

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O grande momento se aproximava... Teodorico anunciou que tudo o que trouxera era “do melhor” e estava carregado de virtude.
Acrescentou que todos precisavam saber que a preciosa relíquia que entregaria à tia era uma prova de que, quando estivera em Jerusalém, seus pensamentos foram todos para ela e também para os sofrimentos de Nosso Senhor...
Suas palavras antecipavam que a relíquia só podia ser algo diretamente relacionado a Cristo. Isso ainda mais emocionou a velha, que se sentiu na obrigação de dizer que ele jamais seria abandonado. Em resposta, o rapaz beijou-lhe as mãos.
Era como que um pacto, e o próprio Teodorico registrou que o doutor Margaride e os padres presentes representavam a Magistratura e a Igreja como testemunhas.
(...)
Ele retomou o martelo e explicou que revelaria o que era a relíquia para que os presentes se preparassem para fazer as orações que julgassem as mais adequadas. Então tossiu e fechou os olhos... Seu semblante estava compenetrado no instante em que disse que se tratava da coroa de espinhos.
Dona Patrocínio soltou um gemido rouco e estremeceu, atirando-se para o caixote... Abraçou-o com ternura... Mas Teodorico não pôde deixar de notar a reação dos demais presentes no oratório. O doutor Margaride, por exemplo, passou a coçar o queixo. O senhor Justino afundou-se em seu colarinho. O padre Negrão virou-se para ele com a bocarra aberta.
Ele percebeu que eles desconfiaram e não esconderam sua incredulidade. Por isso mesmo, começou a tremer e a suar frio.
O padre Pinheiro parecia ser uma exceção, pois logo estendeu a mão para felicitar a Dona Patrocínio pela relíquia. Os demais se colocaram em fila para repetir o mesmo gesto.
(...)
Teodorico sentiu-se aliviado e confiante. Sem perder tempo, se aproximou do caixote para abri-lo com o formão do martelo. Seu gesto apavorou a tia Patrocínio, que gritou no mesmo instante. Como podia cravar a rude ferramenta naquela preciosidade?
Ele apressou-se a dizer que não havia perigo... E emendou que havia aprendido a manejar “essas coisinhas de Deus” em Jerusalém. Despregou a tábua e logo surgiu o branco algodão. Fez uma reverência e levantou o conteúdo do caixote para que todos apreciassem.
O papel pardo envolvido na fita vermelha foi revelado... Dona Patrocínio disse que podia sentir o perfume que exalava... Suspirou e sentenciou que “era de morrer!”
Tudo corria exatamente como Teodorico planejara... Enrubesceu no momento em que passou a dizer que somente a tia tinha o direito de desembrulhar a relíquia. Então, contendo a emoção, ela pegou o embrulho com todo o respeito... Dirigiu o olhar às imagens do oratório e colocou-o sobre o altar. Começou a desatar o nó com todo o cuidado e fazendo cerimônia.
Manipulou cada uma das dobras do papel como se estivesse lidando com “um corpo divino”... Enfim surgiu a “brancura de linho”.
(...)
Brancura de linho? Teodorico não pôde crer! Em vez da coroa de espinhos, o papel pardo guardava a camisa de dormir da Maricocas!
Mas que desfecho! Algo repugnante! As rendas da camisa impregnada de pecado deitadas sobre o altar, entre santos e flores, aos pés da cruz!
O cartão pregado no alfinete também estava lá! A luz das velas pareceu mais forte para que todos pudessem ler “Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!"...
Haveria dedicatória mais sensual? Aqueles tipos beatos não podiam avaliar.
(...)
O romeiro tremeu... Suas pernas vacilaram... Nem mesmo ele soube como se encolheu na cortina verde junto à porta...
Uma desgraça! Sentiu-se confuso e sem condições de avaliar o panorama que se alinhavou... O certo é que pôde ouvir as acusações do padre Negrão... O desafeto falava diretamente à dona da casa que (o que haviam presenciado) era um "Deboche! Escárnio! Camisa de prostituta! Achincalho à senhora Dona Patrocínio! Profanação do oratório!”
Desde o seu “vulnerável esconderijo”, o rapaz observou as botas do padre chutando a camisa branca da Mary para o corredor. Os amigos de Dona Patrocínio retiraram-se um após o outro sem nada pronunciar. As chamas das velas pareciam produzir uma luminosidade trêmula, como que se estivessem escancarando uma calamidade.
(...)
A velha ensopou-se no próprio suor...
Caminhou lentamente na direção da cortina. Seu aspecto era de provocar arrepios... Parou diante do sobrinho, que finalmente se sentiu trespassado pelo olhar velado pelos “frios e ferozes óculos” da velha.
A mulher vociferou um “porcalhão!” entre dentes cerrados... Depois retirou-se.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – Margaride convencido de que Teodorico se tornara “amigo íntimo de Nosso Senhor Jesus Cristo”; dona Patrocínio antecipa-se e revela a todos que há uma relíquia especial para ela; tudo "do melhor e virtuoso"; a casa se enche de solenidade e expectativa

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Teodorico foi ao quarto para pegar as lembrancinhas que trouxe para os amigos da tia Patrocínio... Quando retornava à sala com as “devotas preciosidades” envolvidas num lenço, ouviu o seu nome pronunciado pelo doutor Margaride, que estava conversando com a velha... Então decidiu parar atrás de uma divisória para ouvir.
Em síntese, o homem falava que a casa agora abrigava um verdadeiro cavalheiro... Ele não quis dizer isso diante dele e dos demais, mas, em sua opinião, Teodorico se tornara um “amigo íntimo de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
(...)
O rapaz tossiu para mostrar que estava se aproximando... Assim que o viu com as santas encomendas, Dona Patrocínio mostrou-se enciumada e disse que talvez fosse do agrado de Nosso Senhor que, antes de os demais receberem aquelas “relíquias mínimas”, lhe fosse entregue na capela a “grande relíquia”.
Ela disse isso e na sequência revelou que todos deviam saber que o seu sobrinho havia lhe trazido uma “santa relíquia”. Entusiasmada, anunciava que a partir de então recorreria a ela para buscar o remédio para todas as suas aflições.
O empolgado doutor Margaride gritou um “bravíssimo!”... E não foi sem uma ponta de orgulho que deu a entender que aquilo só podia ser o resultado dos conselhos que havia dado ao romeiro antes de sua partida para a Terra Santa.
O padre Pinheiro, que estava diante do espelho a examinar a própria língua, disse que não havia em todo Portugal sobrinhos como aquele... O tabelião Justino achou que devia acrescentar elogios e gritou que os modos de Teodorico eram os de um “filho devotado à mãe”.
O padre Negrão finalizou a bajulação dizendo que restava saber qual era a preciosa relíquia que o jovem trouxera para a amada Dona Patrocínio. No mesmo instante, Teodorico teve vontade de esmurrar o desafeto e o fitou com olhos agressivos. Não deixou o tipo sem resposta e disse que era bem provável que o religioso (e fez questão de destacar: caso fosse mesmo “um verdadeiro sacerdote”) se atirasse “de focinho” para o chão e rezaria assim que visse a maravilha que ele trouxera para a tia.
Virando-se para a Dona Patrocínio, Teodorico disse que logo todos poderiam contemplar a santa relíquia no oratório. Acrescentou que o sábio Topsius havia garantido que, assim que a preciosidade fosse revelada, a família inteira se emocionaria.
(...)
De fato, a velha não conseguia dominar a emoção... Levantou-se de sua cadeira e colocou as mãos sobre o peito.
Teodorico sentiu que o momento era propício, então retirou-se novamente... Dessa vez para providenciar um martelo.
Quando retornou, viu o Margaride com suas luvas pretas... Atrás dele estava a dona da casa. Os panos de sua veste conferiam-lhe aspecto eclesiástico.
Em silêncio, caminharam pelo corredor... O som do bico de gás dominava a atmosfera... Vicência e a cozinheira colocaram-se a um canto, onde desfiavam seus rosários.
O oratório estava resplandecente... As velas de cera faziam a prataria brilhar. As túnicas que vestiam as imagens eram de um lustro fenomenal. Os santos pareciam regozijados... O momento tornava a noite gloriosa.
Teodorico olhou para a cruz que prendia o “Cristo de ouro”... Gostou de ver mais uma vez que tudo ali reluzia. Foi o doutor Margaride quem tomou a palavra que melhor definia o que todos sentiam: “Tudo com muito gosto! Que divina cena!”
O rapaz adotou um aspecto mais piedoso... Acomodou o caixote sobre a almofada de veludo... Curvou-se sobre ele e pronunciou um “Ave”. Na sequência, retirou a toalha que o cobria e a pendurou num de seus braços. Pigarreou discretamente.
Depois iniciou um discurso sobre a preciosa relíquia que havia trazido para a sua muito estimada tia... Explicou que ainda não a havia revelado porque estava procedendo tal como lhe orientara o “senhor Patriarca de Jerusalém”.
Ressaltou que tudo o que contemplariam era santo... E isso incluía o papel de embrulho, a fita que o envolvia, a madeira do caixote, os pregos... Falou especificamente dos pregos, garantindo que eles estiveram nas tábuas da Arca de Noé. Neste ponto chamou a atenção do padre Negrão para que ele mesmo conferisse o estado corroído da ferragem.
Certo de que estava convencendo os ouvintes, sentenciou por fim que tudo o que trouxera era “do melhor” e que a “virtude” escorria de todas as peças.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – a fantástica lorota sobre o enfrentamento com o barbaças inglês; palavras agressivas direcionadas ao principal desafeto; hora do chá; o tabelião Justino resolveu sua curiosidade em ocasião de sigilo; das lembrancinhas

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Depois de colocar o padre intrometido em seu devido lugar, Teodorico dirigiu-se à tia para explicar o que ocorrera no hotel...
Então ele inventou que estava a rezar à Santa Maria do Patrocínio e que, de joelhos, pedia-lhe que proporcionasse muitos anos de vida à tia. No entanto, desde o quarto vizinho, uma inglesa herege tocava piano e cantava “tolices imorais” daquelas que se ouvem nos teatros... A “voz excomungada” desfiava o péssimo repertório aos gritos de “Sou o Barba-Azul, olé! Ser viúvo é o meu filé”...
Isso ocorreu também nas noites subsequentes... Então, houve certa ocasião  em que, desesperado, decidiu sair ao corredor para esmurrar a porta do quarto da fulana para pedir-lhe o favor de se calar. Acrescentou que ele era cristão e que pretendia rezar.
O doutor Margaride manifestou que ele estava no direito de protestar. Teodorico emendou que o patriarca lhe dissera que ao seu favor estava a lei...
Retomando o caso, explicou que retornava ao seu quarto quando foi surpreendido pelo pai da pianista... Um tipo de barbaças, que trazia a bengala à mão.
(...)
Os ouvintes pareciam magnetizados enquanto esperavam o desfecho do caso... Teodorico aproveitou para caprichar e disse que, ao se deparar com o brutamontes inglês, simplesmente cruzou os braços e falou educadamente que não pretendia participar de escândalos bem “ao pé do túmulo de Nosso Senhor”...
Deixou claro aos que o ouviam que desejava apenas rezar sossegadamente... Contudo o barbaças pôs-se a vociferar palavras ofensivas à religião e ao sepulcro de Nosso Senhor... Coisas que ele mesmo não tinha coragem de repetir aos amigos de sua doce tia. Foi só então que avançou as mãos para o pescoço do inconveniente inglês.
Dona Patrocínio quis saber se o sobrinho havia machucado o agressor... Teodorico garantiu que sim, e com toda a sua ferocidade. Neste momento, o padre Pinheiro falou das leis canônicas e garantiu que elas autorizavam “a fé a desancar a impiedade”... O senhor Justino não escondeu sua animação pelo desfecho, vibrou com a narrativa que selava a vitória de um lusitano sobre o gringo.
Teodorico percebeu que os amigos de Dona Patrocínio gostaram do que ouviram... Então, levantou para bradar que diante dele ninguém podia surgir com “impiedades”, pois podiam saber que revidaria violentamente. Disse isso e emendou que “em coisas de religião” ele era uma fera.
(...)
Seus gestos e modo de falar também se endereçavam ao padre Negrão... Ao que tudo indicava, ele não se daria bem com aquele servo de Deus.
Certamente não foi por mera coincidência que o tipo se encolheu. Para o religioso intrometido, a entrada da Vicência com o chá e o rico jogo herdado do comendador foi providencial. Cada um passou a se ocupar de torradas e chávenas, esfriando um pouco o assunto que estava sendo abordado.
Os comentários que se seguiram foram mais leves... Em síntese diziam que a viagem certamente havia sido instrutiva, um verdadeiro curso... Também falaram a respeito da noite prazerosa que estavam tendo e do modo agradável como Teodorico fazia a narrativa.
Justino se afastou para a janela e deu a entender que gostaria de ter uma palavra apartada dos demais. Teodorico se aproximou do tabelião e os dois se puseram a contemplar o céu estrelado... Sentindo-se protegido pelas franjas das cortinas, o homem colou os lábios nas barbas do moço e perguntou a respeito das mulheres “do caminho”.
Como o Raposo confiava do Justino, sussurrou-lhe que elas eram de enlouquecer a qualquer um.
Os olhos do Justino faiscaram e suas mão tremeram tanto que quase derrubaram a xícara.
(...)
Abafando o diálogo indiscreto, Teodorico comentou em alta voz que, de fato, a noite estava bonita... Depois emendou que as estrelas não podiam ser comparadas com as que contemplara às margens do Jordão.
No mesmo instante, o padre Pinheiro chegou bem perto para perguntar se ele havia se lembrado de lhe trazer um frasquinho com a água do rio santificado.
O rapaz aproveitou para dizer de uma só vez que as encomendas dos amigos não foram esquecidas... Além do frasquinho do padre Pinheiro, trouxera o “raminho do Monte Olivete” o Justino e a fotografia solicitada pelo doutor Margaride. Tudo isso estava entre as lembrancinhas que ele trouxera da Palestina.
Era só a questão de se dirigir para o quarto e distribuí-las solenemente.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – as mentiras de Teodorico fizeram de Pote um padre latinista; iniciando a conversa a respeito do confronto com o brutamontes inglês, pai de estonteante Ruby; a empolgante narrativa só não convencia o padre Negrão;

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O doutor Margaride aprovava absolutamente a tudo o que estava ouvindo de Teodorico... Não se cansava de exclamar um “Magnifico!” depois de cada uma de suas revelações.
Na sequência ele quis saber se o rapaz e o seu companheiro Topsius não contaram com algum guia sábio para conduzi-los em meio às sagradas ruínas... Teodorico respondeu que contaram com “um grande latinista, o Padre Pote!”
(...)
Essa última foi demais! O folgazão Pote se transformou em “padre latinista” nas inverdades contadas pelo Raposo!
(...)
No mesmo instante, como se tivesse ensaiado toda a sua palestra, Teodorico falou de certa “gloriosa noite”, quando acamparam “junto a Ramlê” sob uma lua esplêndida a iluminar as paragens e ruínas da religião... Ele destacou que ouviam rugidos de leões enquanto beduínos armados de lanças se ocupavam da vigilância.
O relato deixou o doutor Margaride agitado. O homem se levantou empolgado com a descrição da cena que, no seu entendimento era inspiradora e digna dos cenários bíblicos... Manifestou sua vontade de experimentar algo parecido e disse que, se lá estivesse, não perderia a chance de escrever uma ode.
O padre Negrão puxou o casaco do magistrado... Disse que, para que todos pudessem aproveitar, era melhor deixar o ”nosso” Teodorico falar... Ainda impressionado, Margaride respondeu que ninguém entre os presentes se identificava mais do que ele com os eventos grandiosos.
O assunto se encerrou depois que Dona Patrocínio interveio e disse que o sobrinho devia prosseguir... E sugeriu que falasse de algo que lhe sucedera “com Nosso Senhor”, pois pretendia ouvir coisas que os enchessem de ternura.
(...)
Todos silenciaram e voltaram novamente a atenção ao Teodorico.
Ele passou a falar a respeito de sua ida a Jerusalém... Contou que duas estrelas os guiavam e que o fenômeno sempre ocorria quando peregrinos finos e de boas famílias faziam o santo percurso.
Disse que chorou quando avistou as muralhas da cidade santa numa manhã de muita chuva. E também quando visitou o Santo Sepulcro com o Padre Pote... Nessa ocasião pronunciara umas doces palavras em meio aos soluços. Dirigindo-se diretamente a Jesus, dissera que estava ali “da parte de sua tia”.
Dona Patrocínio quase sufocava de tanta emoção e manifestou que o sobrinho fizera um gesto de muita ternura “diante do tumulozinho” de Nosso Senhor.
Teodorico aproveitou para caprichar em sua encenação... Fez uma fisionomia excitada e passou o lenço pelo rosto... Depois disse que naquela noite se recolhera ao hotel para rezar.
(...)
Na sequência de sua narração, disse que, depois que voltou da visita ao Santo Sepulcro, se recolheu para rezar no hotel... Mas acrescentou que ocorreu um fato muito desagradável, pois, por motivação religiosa, em defesa de Portugal e da honra de seu nome, atracara-se “com um grande inglês de barbas”.
Mostrando-se inconformado, o padre Negrão exclamou sua indignação... Como é que podiam se envolver em discussões ríspidas “na cidade de Jesus Cristo”? Mas aquilo só podia ser um desacato!
Teodorico já considerava o padre um desafeto... Encarou-o confirmando que, de fato, o ocorrido havia sido dos mais desagradáveis... Todavia o próprio Patriarca de Jerusalém lhe dera razão!
Fez essa afirmação e quis saber o que o Negrão tinha a comentar... O sacerdote baixou a cabeça e deu a entender que, se a principal autoridade religiosa da Cidade Santa  aprovara, ele mesmo não tinha mais argumentos.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
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Prof.Gilberto

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