quinta-feira, 16 de março de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – registros de 24 de maio de 1894; seu Alexandre investe dinheiro numa venda depois de bons resultados na lavra do Bom Sucesso; sortimento de mercadorias revela um pouco da base alimentar da população da Diamantina de fins do século XIX; seu Zeca é contratado por vinte mil réis de salário e mais a refeição na casa do patrão; seu Zeca e os gases intestinais

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/03/minha-vida-de-menina-de-helena-morley_12.html antes de ler esta postagem:

Houve ocasião no começo de 1894 em que o pai de Helena, o seu Alexandre, conseguiu bons resultados numa lavra, o “serviço do Bom Sucesso”...
Dona Carolina considerou a oportunidade de montarem um estabelecimento comercial... Isso seria um investimento, pois o dinheiro poderia render. Além disso, com o comércio, a família teria menos gastos com a própria alimentação.
O raciocínio era simples e tinha tudo para dar certo. O problema é que o seu Alexandre não se via como “vendeiro”. Quanto a este problema, dona Carolina explicou que podiam contratar “um homem sério para tomar conta” do negócio. Seu Alexandre podia continuar com o trabalho na lavra e uma vez por semana, quando tirava o dia para ficar com a família, fiscalizaria os resultados.
(...)
Os registros de 24 de maio de 1894 relatam esses episódios.
Invariavelmente seu Alexandre concordava com as opiniões da esposa e colocava em prática seus projetos.
O “homem sério” que ele contratou era o seu Zeca, um velho que morava “no alto da Rua da Luz”. Helena explica que ele vivia da venda de cigarrinhos de palha que fazia e que se tratava de um tipo “pachorrento”.
A venda foi instalada num cômodo que ficava “atrás da casa de Seu Cadete”. O pai de Helena acertou o aluguel sem ter de se preocupar com prateleiras, balança ou balcão. O cômodo já possuía essas coisas porque já havia sido usado para fins comerciais.
Acertado o “ponto” que ficava próximo ao “rancho dos tropeiros”, restava provê-lo de toda sorte de artigos. Helena conta que certo Isaías ficou encarregado deste serviço. Ele comprou “um cargueiro de rapaduras, uma bruaca (caixa de madeira utilizada pelos tropeiros) de feijão e outra de farinha, arroz, um balaio de toucinho, um barril de azeite muito claro, outro de cachaça, uma saca de sal, goma muito boa, milho fubá, queijos e tudo, até palmito”.
Terminaram de instalar a venda e o seu Zeca começou a trabalhar. Seu salário era de vinte mil réis. Como ele morava longe do estabelecimento, ficou combinado que almoçaria na casa de seu Alexandre, ficando o prato por conta de dona Carolina.
(...)
Alguns dias se passaram e um dos irmãos de dona Carolina, o tio Joãozinho, apareceu para conversar com seu Alexandre... Ele riu-se a valer enquanto dizia que o cunhado havia feito muito mal ao colocar o seu Zeca para trabalhar na venda... Melhor seria deixá-lo em paz e a vender os seus cigarrinhos.
Joãozinho comentou que estivera na venda... Em sua opinião não daria certo porque seu Zeca era um tipo “lerdo demais”. Alexandre tinha de contratar alguém esperto! Mas o pai de Helena argumentou que “os espertos” surrupiavam e certamente trariam dores de cabeça para ele.
(...)
Na sequência, Helena escreveu um pouco mais a respeito do funcionário contratado pelo pai.
Ela e Luisinha estranhavam a mania que o velho tinha de não comer do mesmo que a família... Ele rejeitava “carne seca, couve picadinha, torresmo” e tudo o mais. Elas não entendiam por que ele só comia “carne com quiabo, arroz, angu” e alimentos bem cozidos... Não faziam ideia do que ele queria dizer quando afirmava que sofria de gases.
Mas essas dúvidas logo foram esclarecidas.
Helena conta que certa vez estavam à mesa quando o seu Zeca pediu licença à dona Carolina. Ele levantou-se e dirigiu-se ao corredor.
É a própria Helena quem garante que começaram a ouvir ”umas coisas” que não podia detalhar no diário. Ela e Luisinha não conseguiram conter o riso... “Apertaram a boca” para segurá-lo, mas não adiantou.
(...)
É bom que se saiba que as duas irmãs eram assim mesmo... Viviam a rir das situações diversas. Algumas de fato eram engraçadas... Outras, apesar de vexatórias para alguém, também provocavam gargalhadas que elas não conseguiam segurar.
Esse comportamento era criticado e punido pelos pais... Mas o que podiam fazer? Elas eram garotas espontâneas e alegres... O diário de Helena está repleto desses casos. A maioria deles contagia o leitor que, de repente, passa a rir da naturalidade da narrativa e de seu conteúdo.
Sobre o episódio acima descrito ainda temos de esclarecer um pouco mais. Por enquanto basta saber que dona Carolina ficou furiosa e ralhou com as filhas. Certamente seu Zeca ficou um tanto desconcertado, e é por isso que tentou se justificar às garotas dizendo que era um homem doente e que, se não se livrasse dos gases, “eles subiam para o seu peito e o afrontavam”.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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