domingo, 2 de outubro de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – devolvendo os filmes; papo com colegas na sala dos professores; sobre irritação, “enxofrar-se” e “emburrar”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/10/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-dona.html antes de ler esta postagem:

Chegando à locadora, Tertuliano foi atendido pela jovem empregada inexperiente... Isso foi um alívio para o professor, que não gostaria mesmo de ser atendido pelo rapaz das outras vezes.
As fitas que entregou deviam ser acertadas como empréstimos... As que constavam de sua ficha e que ficaram em casa seriam adquiridas em definitivo.
A moça quis saber se ele não pretendia alugar ou comprar algum outro filme... Tertuliano respondeu negativamente e, sem se dar conta de que não havia conversado com ela a respeito da tal pesquisa, disse que havia terminado seu trabalho...
O processo foi um tanto lento... Ele acabou ajudando a moça a fazer as contas. Ao mesmo tempo imaginava que não mais entraria naquele estabelecimento.
(...)
Dirigindo o carro para a escola, Tertuliano pensou sobre os acontecimentos em sua vida desde que assistira ao descompromissado “Quem Porfia Mata Caça”... Entendeu que estava passando por uma transformação. Como as lagartas que se metamorfoseiam... Achou graça ao imaginar-se borboleta.
Estacionou o veículo a certa distância da escola... Tinha tempo considerável até o início das aulas... Tomaria um café, folhearia algum jornal... Era certo que não havia preparado nada para as aulas, mas a experiência o ajudaria a improvisar.
(...)
Na sala dos professores havia alguns jornais à disposição... Para chegar até eles teria de passar perto da mesa onde três colegas conversavam... Um deles era o de Matemática... Os outros dois eram um jovem que lecionava Ciências Naturais e uma senhora, de Literatura.
Cumprimentou-os e foi se sentando dando a entender que participaria da troca de ideias. Isso era comum entre os professores da unidade... A inconveniência estaria no fato de o assunto tratado ser de ordem confidencial ou se dissesse respeito a algo muito particular, restrito aos três.
Nessas pequenas reuniões normalmente o recém-chegado é aceito... Disseram a ele que “de modo algum” interrompia... Sua presença era muito bem-vinda...
Tertuliano pegou um café e sentou-se... Perguntou se havia novidades... O de Matemática adiantou-se a propor falarem das “de fora” ou das “de dentro”... O de História explicou que sobre o recinto escolar logo saberia... Pretendia ouvir as notícias expostas nos jornais.
A de Literatura respondeu que “as guerras que havia ontem continuam hoje”... Como se tivesse combinado, o de Ciências Naturais emendou que havia grande probabilidade de outra guerra estar pronta para se iniciar.
O de Matemática perguntou sobre o fim-de-semana de Tertuliano... Este respondeu que passara tranquilo, em paz, e que aproveitou para prosseguir suas leituras do livro sobre as civilizações mesopotâmicas, especificamente o capítulo sobre os amorreus...
O colega disse que aproveitara para ir ao cinema com a esposa... Tertuliano desviou os olhos enquanto o de Matemática afirmou aos companheiros que o de História não era um apreciador de filmes...
Tertuliano o corrigiu garantindo que nunca havia afirmado que não gostava de cinema... No mesmo instante justificou que preferia os livros.
O professor de Matemática notou o desassossego do colega e explicou que a conversa não era motivo para “enxofrar-se”.
A senhora que lecionava Literatura pareceu notar os tons um pouco mais exaltados e adiantou-se a perguntar qual o significado de “enxofrar-se”...  O de Matemática explicou que significa “irritar-se, zangar-se”... Acrescentou que o mais apropriado seria “arrufar-se”...
O jovem de Ciências Naturais quis entender por que “arrufar-se” seria mais preciso do que “irritar-se”... O outro disse que se tratava apenas de uma interpretação pessoal... Lembrou que em sua infância, ao ser castigado pela mãe, tornava-se ensimesmado e permanecia em prolongado silêncio... Então ela dizia-lhe para deixar de ser “arrufado”.
A de Literatura comentou que ao tempo de sua infância a palavra que usavam para os “amuos” das crianças era “asinina”... Isso era lá com a família dela... Não adiantaria procurar as significações no dicionário... Entre os seus entendia-se que a criança, depois de ser advertida pelos adultos, “amarrava o burro”.
O riso só não foi geral porque Tertuliano “amarrou o burro”... Depois deixou escapar um sorriso contrariado, mas “entrou no clima” descontraído ao garantir que o uso daquele tipo de linguagem não era uma exclusividade da família da professora, já que também em sua casa usava-se a expressão.
Todos riram...
(...)
Aproximava-se a hora de início das aulas...
A professora e o de Ciências Naturais se despediram.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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