Ao despertar, Tertuliano percebeu-se cansado... Teve dificuldades para se levantar e, embora estivesse com fome, sentia a boca seca como se tivesse feito uma refeição salgada demais.
Tomou água e entendeu que não tinha apetite para ingerir nada sólido... Vestiu o roupão, rumou para a sala e aproximou-se da carta. Sem dúvida o documento dera muito trabalho. Observou o cesto repleto de papéis desprezados após revisões...
O texto final não se baseava num mero pedido de fotografia autografada... O escritório da produtora poderia ou não encaminhar alguns dados sobre o ator desde que se sensibilizasse com o estudo que a remetente desenvolvia.
Em meio às frases, ele cuidara de insinuar que (Maria) precisava saber em que parte da cidade o artista secundário residia... Isso tinha a ver com sua pesquisa a respeito de atores secundários que mereciam o reconhecimento de sua importância para o desenvolvimento dos filmes...
Num dos trechos do final, o texto salientava que assim como os grandes rios dependem da contribuição das águas dos riachos, as grandes produções cinematográficas deviam muito à colaboração desses atores.
(...)
Tertuliano refletiu...
Podia ocorrer de a empresa
não pensar da mesma forma e considerar que esses artistas menores sempre
geravam custos que deviam ser evitados. E isso sempre ocorreria se eles fossem
mantidos como “inferiores”...
Podia-se imaginar o
Santa-Clara reivindicando aumento salarial depois de ler a carta! Se assim
fosse, talvez o escritório a eliminasse.
E o que poderia ser feito se outros tantos atores secundários
se empolgassem com a situação e resolvessem se somar ao “cópia viva” de
Tertuliano em seu protesto?
(...)
O próprio Saramago esclarece que o episódio classista que poderia
representar um “cataclismo para a indústria do cinema” não ocorreria... Pelo
menos ele não tinha ideia de escrever a respeito de um movimento social dessa
natureza!
Imaginemos mais uma vez... O funcionário responsável
pela leitura das cartas se espantaria com o trecho alusivo à importância dos
secundários; comunicaria o evento ao seu chefe imediato; este trataria com o
superior... Evidentemente este providenciaria o necessário para que o gérmen
depositado naquelas linhas (de autoria de uma mulher de nome Maria da Paz; é bom
que se lembre) crescesse.
O que fariam com a carta? Podia ser que atendessem ao pedido da
fotografia autografada... Já o insólito pedido de informações a respeito do
endereço do artista provavelmente seria motivo de reuniões, e quase certamente
decidiriam ignorá-lo... Talvez a carta inteira fosse ignorada! Talvez a
eliminassem no fogo colocando um fim na história que só podia ser engendrada
por uma mulher mentalmente atormentada.
Finalmente... Os tipos da produtora prosseguiriam em suas conjecturas...
Alguém poderia garantir que essa Maria da Paz jamais encontrasse o Daniel
Santa-Clara no futuro? Ora, isso poderia ocorrer! Conversariam e poderia
acontecer de aquelas ideias sobre o seu estudo não despertar nele o menor
interesse...
Não há dúvida que essa
possibilidade diminuiria os dramas de consciência no caso de eliminarem a carta.
(...)
Depois de mais uma vez aprovar o texto que seria encaminhado à produtora
de filmes, Tertuliano abriu uma carta que Maria da Paz lhe escrevera há algum
tempo... Fez isso para copiar a assinatura dela... Se levarmos em consideração as
reflexões anteriores, e a possibilidade de colocarem fogo ao papel, esse
exercício seria um capricho dispensável. Mas é verdade que ela mesma havia
sugerido o esforço para tornar a assinatura mais parecida com a dela.
(...)
Dobrou a carta e a colocou
no envelope... Selou...
Era domingo e o máximo que
podia fazer era depositá-la no “marco postal” mais próximo de seu
apartamento... Evidentemente o carro dos correios só passaria no dia seguinte. Pelo
menos se livraria de uma vez da carta que resultara do plano de investigação
sobre o tipo que era a sua “viva duplicidade”...
Vemos Tertuliano
ansioso por ”virar a página”... Ele já não suportava nem mesmo notar as várias
caixas de fitas que estavam no chão. Tudo o que pretendera com aqueles filmes
havia conseguido... Não interessava mais saber em quais filmes o Santa-Clara
atuaria, se com bigode ou de rosto escanhoado... Não havia mais quebra-cabeças
nem necessidade de listas com nomes a serem eliminados.
Pensava sobre essas coisas quando mais uma vez se lembrou do primeiro
número de telefone para o qual ligara sem que ninguém o atendesse... Precisava
tentar mais uma vez... E se o próprio ator o atendesse? A carta poderia ser
lançada ao cesto de papéis como os demais rascunhos...
Por outro lado, o envio da
carta podia proporcionar-lhe um tempo... Ele precisava descansar... Se houvesse
algum retorno da produtora, isso não ocorreria em menos de uma semana... Talvez
se distraísse assistindo ao “Quem Porfia Mata Caça”...
Por que não?
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_30.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto