sábado, 28 de maio de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – pobre camponês salvadorenho atingido por tiro disparado por hondurenhos passou por “cirurgia” na enfermaria improvisada no meio da selva; jovem soldado desconhecido e sua agonia final; debandada em pleno tiroteio, cada um por si; de frente com um soldado

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_28.html antes de ler esta postagem:

Kapuscinski destaca dois atendimentos dispensados pelos enfermeiros daquele remoto e precário campo no meio da mata de Santa Rosa...
(...)
O primeiro deles foi a um camponês salvadorenho que estava ferido com um balaço no joelho. Um caminhão do exército hondurenho o trouxera... Certamente os militares pretendiam interrogá-lo, mas era necessário extrair o projétil antes que algo mais grave se sucedesse com o prisioneiro.
O tipo estava completamente arrasado, sem camisa e descalço... Sangrava muito... Deitado sobre a relva, ele esboçou um gemido, mas foi silenciado pelo enfermeiro que fazia as “cirurgias”.
O enfermeiro enfiou os dedos na ferida aberta e puxou a bala... Despejaram iodo no local e ajeitaram uma bandagem. O camponês não conseguia caminhar, mas forçaram-no a seguir o mais rápido que podia para cima do caminhão... Alguns jornalistas tentaram ajudá-lo, porém foram impedidos pelos soldados.
Com muita dificuldade, atirou-se sobre a carroceria do veículo. Resignado, o homem sabia que nada podia esperar do futuro. Completamente entregue aos algozes, sussurrou que “gostaria de uma tragada”... Os jornalistas atiraram-lhe todos os cigarros que tinham... Fizeram isso sem que os soldados percebessem.
O caminhão partiu levando o desgraçado camponês... Por mais contraditório que possa parecer, ele parecia se sentir feliz por causa dos cigarros.
(...)
O segundo caso foi o atendimento a um jovem uniformizado que havia sido alvejado com onze balaços... À sua volta aglomeraram-se vários soldados admirados com a resistência do organismo que não apresentava nenhum sinal de consciência...
Quantos anos tinha o rapaz? Todos se perguntavam... Não mais do que vinte anos... Só mesmo a juventude para oferecer tanta resistência à morte... Um tipo mais velho e fraco não teria como suportar tantos ferimentos.
Os soldados pareciam aguardar ansiosamente o instante derradeiro do moribundo... O enfermeiro já havia sentenciado que o desconhecido não sobreviveria... Ministravam-lhe glicose... Os músculos do rapaz pareciam dar sinais de sobrevida... Seu coração trabalhava num ritmo tão intenso que podia ser escutado pelos homens de olhos arregalados e voltados para a criatura que definhava.
Ninguém o conhecia...
E ninguém sabia ao certo se lutava por Honduras ou por El Salvador...
Quem eram seus pais? Pouco importava...
Um último suspiro o levara ao “Pai Eterno”.
Aos poucos todos deixaram o local.

(...)

Os jornalistas subiram no caminhão reservado a eles para prosseguir viagem rumo aos confrontos que todos esperavam.
Incontáveis curvas formatam a estrada que corta a floresta. Depois de passarem pelo povoado de San Francisco ouviram o barulho das “guerras de verdade”. Metralhadoras, granadas, tiros de fuzis... Os repórteres puderam notar correria de soldados.
Então o caminhão freou bruscamente porque bem à sua frente um artefato provocou a abertura de cratera imensa.
Na sequência outras duas grandes explosões provocaram a fuga desesperada dos jornalistas... Cada um seguiu para o lado que parecia mais conveniente... O barulho era intenso, o perigo de serem atingidos por uma bala era real. Eles as sentiam sibilando bem próximo às suas cabeças.
Kapuscinski conta que correu o mais que pôde, e que notou o cameraman da televisão francesa desesperado a procurar sua câmera... Alguém gritou para que ele se abaixasse para não ser atingido por estilhaços das granadas... O tipo simulou e atirou-se contra o chão dando a entender que estava morto... Parece que isso o salvou.
(...)
O polonês não entra em maiores detalhes porque passou a explicar o que se sucedeu a ele próprio...
Correu feito louco tentando se afastar ao máximo da área. Mas tudo indica que não foi muito longe porque novos disparos ocorreram, ele caiu e decidiu permanecer colado ao chão com os olhos bem fechados.
Depois de algum tempo, ainda deitado, observou trilhas de formigas que seguiam em várias direções. Decidiu contemplá-las por algum tempo até que tivesse condições de tomar uma decisão.
Passados alguns minutos, sem deixar a sua posição, ele quis observar o entorno e viu que à sua frente estava um soldado também a olhá-lo fixamente.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – “voo do terror” para a disputada região de Santa Rosa de Copan; inimigos salvadorenhos interrogados na antiga fortaleza; impressão sobre os muito jovens soldados de Honduras; conhecendo o precário socorro aos feridos

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_39.html antes de ler esta postagem:


O voo do DC-3 para Santa Rosa de Copan foi dos mais assustadores.
Estava na cara que o aparelho não passava de um improvisado transporte de passageiros, já que o seu interior era desprovido de qualquer tipo de assento... Originalmente se tratava de um avião que transportava cargas.
O aparelho era extremamente instável... Os jovens pilotos não conseguiam mantê-lo em “linha reta”, e se divertiam ao notarem que os jornalistas tinham problemas para permanecer de pé enquanto tentavam agarrar um corrimão.
O DC-3 estava mais para “avião do terror”... Kapuscinski via que ele expelia fogo e fumaça pelo céu de Honduras ao mesmo tempo em que realizava “manobras cambaleantes”. Todos se sentiam incomodados também com o vento que entrava pelas falhas da fuselagem.
Antonio Rodriguez, jornalistas da EFE, dizia que tinham de torcer para que os barulhentos motores não pifassem em pleno ar.
(...)
Um caminhão militar levou os jornalistas até a caserna, que fora instalada numa fortaleza espanhola dos tempos coloniais...
Eles passaram por três prisioneiros que eram interrogados no pátio. Os tipos estavam feridos e sofriam pressões do interrogador. Eles pronunciavam frases inaudíveis... Um deles, ferido na barriga, não suportou a perda do sangue e tombou ali mesmo.
O comandante não sabia o que fazer com aquele bando de jornalistas estrangeiros... Tinha motivos para se preocupar porque acreditava que a qualquer momento seriam atacados... Ordenou que lhes dessem camisas militares e que lhes servissem café.
(...)
O lugarejo fica no caminho entre os dois oceanos (o Atlântico e o Pacífico), e podia ser considerado local estratégico para salvadorenhos e hondurenhos em guerra. Apoderar-se do lugar significava, para El Salvador, tornar-se “uma potência de dois oceanos”.
De fato, a campanha salvadorenha evoluía por aquele caminho... Eles ambicionavam conquistar importantes logradouros (Ocotepeque, Santa Rosa, San Pedro Sula, Puerto Cortes)... Suas tropas haviam avançado consideravelmente e pelo rádio era possível ouvir suas transmissões que, animadamente, empolgavam seus soldados e povo: “Alguns gritos, algumas surras; e não haverá mais Honduras”.
(...)
Kapuscinski registra que Honduras era o lado “mais fraco e pobre”... Na caserna observava os oficiais ordenando a partida de unidades ao front. Os soldados eram muito jovens e tinham o rosto moreno assustado... Lembravam índios uniformizados... Demonstravam ao seu modo necessária determinação para o combate.
Os garotos não partiam sem a benção do sacerdote que aparecia no instante derradeiro para dizer umas orações e aspergir a água benta.
(...)
Assim que os jornalistas foram liberados para seguir para o front, Kapuscinski se colocou entre eles. Partiram de caminhão para uma região de elevada altitude coberta por florestas tropicais.
Mais de quarenta quilômetros se passaram até avistarem as primeiras vilas de choupanas queimadas e abandonadas... O caminhão passou por um grupo de camponeses armados de espingardas e facões. Levavam roupas e sombreros do cotidiano, além de uns poucos pertences. Acenaram ao avistarem o caminhão... Mas não há registros de que tenham trocado qualquer informação com os militares ou os jornalistas.
Conforme o caminhão avançou, todos puderam ouvir os tiros das artilharias... O veículo parou um pouco mais à frente, onde havia uma “clareira triangular”. Ali acomodavam os feridos que retornavam do combate.
As acomodações eram precárias... Alguns estavam em macas e muitos outros aguardavam atendimento deitados na relva... Não havia médicos no local, então dois enfermeiros procuravam prestar o atendimento básico.
Kapuscinski ficou impressionado com a calma dos feridos... Entre eles não havia quem reclamasse das dores ou exigisse auxílio.
Alguns soldados serviam água aos pobres coitados... Um dos enfermeiros percorria os que estavam com balaços incrustados pelo corpo e, de lanceta na mão, fazia as incisões para retirá-las. De acordo com o polonês, fazia isso “como se extrai o caroço de uma maçã”... O outro enfermeiro chegava para despejar iodo na ferida e cobri-la “com um curativo rudimentar”.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 27 de maio de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – uma jornada de nervos e retrocessos; conforme o front se aproximava o grupo de jornalistas diminuía; fim do dia e retorno; Nacaome e um precário DC-3 para o transporte até Santa Rosa de Copan

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_6.html antes de ler esta postagem:

O grupo de jornalistas iniciou a caminhada...
No começo tudo parecia correr bem, já que as explosões e o que imaginavam ser tiros eram ouvidos muito ao longe.
Os tipos trataram de conversar como se estivessem a passeio numa trilha... Algumas piadas seguidas de risos escondia o nervosismo.
Mais ou menos depois de um quilômetro os passos começaram a vacilar... Alguns suavam, e isso era um indicador de que o medo rondava os caminhantes. Talvez pensassem que a qualquer momento pudessem ser atingidos por tiros disparados de qualquer parte.
Mesmo assim ninguém admitia que estivesse fraquejando. Um deles sugeriu que seria importante pararem para recompor as forças. Fizeram isso e ao retomarem a caminhada, notaram que dois deles foram ficando para trás, dando a impressão de que precisavam conversar mais detidamente sobre um assunto qualquer...
Mais à frente outro decidiu permanecer para avaliar certa árvore... Depois foi a vez de dois descobrirem que haviam esquecido os filtros das câmeras e, por isso, precisariam retornar...
(...)
Kapuscinski percebeu que as paradas para descanso estavam se prolongando. O caminho em direção a El Salvador começou a parecer interminável. Os jornalistas pareciam viver um impasse... Queriam prosseguir, mas a cada instante notavam que certas iniciativas dos companheiros representavam retrocessos... Algo teria de ocorrer para justificar interrupção... Talvez pudessem retomar a empreitada noutra ocasião com maior segurança.
Todavia o ar era puro... Só mesmo o medo da jornada justificaria a sua suspensão.
(...)
Aconteceu que o sol começou a se pôr... A falta de luz natural comprometeria o trabalho dos que lidavam com câmeras de filmagem... Os fotômetros indicavam que não teriam condições de filmar nada... Impossível acionar zoom ou capturar elementos em movimento... Nem mesmo os objetos estáticos ficariam bem definidos!
Concluíram que chegariam ao front na mais completa escuridão... Então decidiram retornar ao ponto em que os pequenos canhões posicionados debaixo da árvore disparavam incessantemente.
(...)
Ao chegaram ao ponto de onde haviam partido encontraram os pequenos canhões ainda em atividade... No local estavam os que tinham decidido permanecer por motivos diversos (inclusive por problemas cardíacos), os que ficaram para redigir breves comentários sobre o confronto, os que haviam ficado para trás devido à conversa reservada, e também os que retornaram em busca dos filtros de lentes.
O mesmo major, que os aconselhara a não prosseguir pela estrada, conseguiu um caminhão para transportá-los até à pequena cidade de Nacaome.
Antes de dormir, o grupo discutiu e votou algumas deliberações... Entre elas, encarregaram os jornalistas norte-americanos de entrarem em contato com o presidente de Honduras solicitando transporte dos profissionais até o front.
(...)
A chuvosa madrugada não havia chegado ao fim quando uma precária aeronave pousou na localidade.
O DC-3 estava coberto de fuligem. Realmente o aparelho não atendia aos requisitos mínimos de segurança... Algumas tábuas substituíam parte de sua fuselagem avariada.
Ao verem a máquina voadora, aqueles que alegavam algum tipo de problema de saúde (evidentemente esse era o caso dos cardíacos) decidiram aguardar em Nacaome o transporte que os levaria de volta a Tegucigalpa.
Os que resolveram encarar o voo pousariam apenas em Santa Rosa de Copan...
Isso se nada de trágico ocorresse no percurso.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – o porta-voz militar hondurenho garantiu que seu país estava vencendo a guerra; jornalistas a caminho do front; de algumas temeridades da guerra entre iguais; das motivações dos jornalistas estrangeiros para prosseguir em frente; início da marcha

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_27.html antes de ler esta postagem:

O capitão do exército hondurenho explicou que Honduras estava vencendo a guerra... Havia mais de uma frente de batalha e os resultados eram muito positivos. Era provável que El Salvador não resistisse por muito tempo, pois suas baixas eram bem significativas.
Um jornalista norte-americano, certo Green que pertencia à AP, agradeceu e em nome dos demais explicou que pretendiam “ver” o que acabavam de registrar a partir dos esclarecimentos oficiais.
Kapuscinski dá a entender que naquela parte do mundo a “área de influência” era dos norte-americanos e, assim sendo, os demais jornalistas deixavam que os profissionais ianques tomassem a frente... De fato, o solícito militar garantiu que no dia seguinte conduziriam os jornalistas ao front para que pudessem trazer “duas fotografias cada”.
(...)
Ao deixarem Tegucigalpa, rumaram para a estrada que acessa o país inimigo.
Mais oito quilômetros à frente e chegariam à fronteira, marcada por seus pântanos e florestas fechadas.
O militar responsável pelo trecho, um major “suado e com barba por fazer”, anunciou que os repórteres não poderiam seguir em frente. Talvez esperasse que eles se dessem por satisfeitos por chegarem próximos a dois pequenos canhões que disparavam...
Os conflitos que estavam ocorrendo não permitiam garantir nenhuma segurança àqueles gringos... A região repleta de arbustos confundia os dois exércitos, que usavam armas e uniformes idênticos... Além do mais falavam a mesma língua. Tudo isso dificultava o reconhecimento das tropas. As lamentáveis confusões seriam inevitáveis.
Os jornalistas deviam retornar a Tegucigalpa porque no front podiam ser mortos por qualquer um dos dois exércitos... Kapuscinski registra em seu livro que dispensava esse zelo, já que para os fatalmente atingidos pouco importa a procedência do tiro.
(...)
Os operadores de câmeras de televisões insistiram e argumentaram que precisavam ”fazer imagens” dos soldados em ação, “disparando e morrendo”... Aos poucos manifestaram suas demandas: Gregor Straub (NBC) precisava de um “close” de soldado suando; Rodolf Carrillo (CBS) esperava focalizar um comandante em prantos por ter perdido todo o pelotão; um cameraman francês estava ali para registrar os combates dos exércitos em tomada de “quadro aberto”.
Os locutores das rádios aproveitaram para engrossar os pedidos de avanço para o front... São citados: Enrique Amado (Rádio Mundo), que pretendia entrevistar um soldado ferido nos últimos suspiros de sua existência; Charles Meadows (Rádio Canadá), que ambicionava gravar um soldado amaldiçoando o conflito em meio aos canhoneios; Naotake Mochida (Rádio Japan) esperava captar os gritos de um oficial numa comunicação através de um moderno aparelho feito no Japão.
(...)
Havia os jornalistas que não insistiram para prosseguir... Por diferentes motivos, ficariam ali mesmo onde estavam e fariam breves registros com “comentários gerais” antes de retornarem para a capital...
Mas entre os demais se notava uma “quase competição”... Os profissionais das agências de notícias não queriam “ficar para trás” em relação aos de televisão... Já que os norte-americanos estavam dispostos a encarar os perigos, os enviados de Reuters e AFP também iriam... O repórter da BBC não podia deixar que o da NBC partisse “sem concorrência”.
Kapuscinski estava ali exatamente para “seguir em frente” e realizar as reportagens que encaminharia à PAP... Não concorria com os demais...
Juntou-se a eles.
(...)
Iniciaram a marcha... Uma loucura!
Principalmente porque passariam por um elevado debaixo de calor extenuante...
Pior que isso era o fato de serem facilmente avistados pelos dois exércitos que estavam escondidos na mata.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – o fim da longa noite de desorientação, tempestade, frio; de fato havia uma guerra; muros pichados; dos temores dos “cidadãos mistos” e os de “nacionalidades suspeitas”; repórteres estrangeiros se encaminham para o palácio do governo hondurenho

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_54.html antes de ler esta postagem:

No meio da madrugada dois policiais encontraram Kapuscinski perdido em sua tentativa de se proteger da tempestade e do frio... Seu estado era lastimável... Os fardados pretendiam encaminhá-lo à delegacia, mas ele apresentou os documentos e conseguiu explicar a sua história... Então ficou sabendo que a guerra se desenvolveu a pleno vapor durante toda a noite.
Mas o front era longe da capital, e ali não se ouviam os disparos.
(...)
Os habitantes de Tegucigalpa se organizavam como podiam... Esperavam um ataque para qualquer momento... Então cavavam valas e organizavam barricadas. Armazenavam provisões e protegiam vidraças, portas e paredes.
As pessoas corriam de um lado para outro sem motivos aparentes... Jovens estudantes pichavam os muros com palavras de ordem. Kapuscinski destaca algumas das frases que avistou por aqueles dias:

* “Que não sonhem cabeças duras
    Conquistar o nosso Honduras”
            * “Compatriotas! Sem temor,
               Degolar o agressor”
* “Vinguemos o 3x0”
            * “Infâmia a Porfírio Ramos
                Que vive com uma salvadorenha!”
* “Quem avistar Raimundo Grandos
    Deve informar a polícia –
    Trata-se de um espião de El Salvador!”

O polonês tece comentário crítico à situação que certamente era comum aos dois países... Os nervos estavam à flor da pele e as pessoas comuns enxergavam espiões em cada esquina... Também os comunistas estavam sendo atacados... Muitos inimigos do socialismo aproveitavam a onda para incriminá-los.
(...)
Então o próprio Kapuscinski tinha motivos para alimentar temores, já que se tratava do único correspondente vindo de país socialista... Ele podia, por exemplo, ser expulso a qualquer momento.
Decidiu se aproximar do operador de telex da agência de correio, Jose Málaga... Enquanto tomavam cerveja o tipo confessou-lhe que também andava assustado, já que sua mãe era salvadorenha... Ele se enquadrava entre os tipos que consideravam suspeitos...
Não era por acaso que Jose telefonava a quase todo instante à mãe para informar-lhe a respeito de sua condição, e também para saber se estava tudo bem com ela... O polonês entendeu que sua condição era semelhante à do outro.
E havia motivos reais para se preocupar porque a polícia estava prendendo as pessoas de “nacionalidade mista” (como era o caso do funcionário do correio) e os salvadorenhos. A quantidade de presos por causa da guerra crescera tanto que as autoridades organizaram “campos provisórios” para acomodá-los... Em vários casos, estádios de futebol cumpriam satisfatoriamente essa função.
Kapuscinski destaca a observação a respeito da dupla função dos estádios: em tempos de paz acomodam fanáticos torcedores para as partidas de futebol; “em tempos de crise são transformados em campos de concentração”.
(...)
Quarenta correspondentes mexicanos chegaram a Tegucigalpa no meio do dia... Eles viajaram de avião até a Guatemala e, de lá para a capital de Honduras, seguiram de ônibus, já que o aeroporto estava fechado.
Kapuscinski juntou-se a eles, pois pretendiam seguir para o front. Para o bom encaminhamento da missão pretendiam coletar informações do governo local e obter autorização dos homens de guerra para seguir adiante... É por isso que todos se encaminharam para o palácio presidencial, no centro da capital.
Outros estrangeiros juntaram-se à delegação.
(...)
O local respirava atmosfera bélica...
O autor descreve o prédio destacando sua cor azul brilhante e a construção de “traços feios”.
A sede do governo estava cercada por tropas muito bem armadas. Além dos sacos de areia que protegiam as metralhadoras, canhões antiaéreos estavam instalados no pátio.
O capitão que fazia as vezes de intermediário entre o exército e a imprensa apareceu para conversar com os jornalistas estrangeiros.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 26 de maio de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – bombeiros conduzem o repórter à agência de correio; um disputado aparelho de telex; Honduras solicita auxílio norte-americano; aventura do retorno ao hotel, escuridão, incidentes e mal entendidos; fuga, traumas físicos e tempestade na madrugada hondurenha

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_26.html antes de ler esta postagem:

Depois de elaborar a redação do telegrama, restava encaminhá-la ao correio... A cidade e suas colinas escureciam e isso pesava contra o polonês, que sabia que teria dificuldade para encontrar a agência. Acabara de se instalar e não conhecia o traçado das ruas...
O dono do hotel não tinha nenhum funcionário à disposição que pudesse acompanhar o hóspede estrangeiro. Solícito, telefonou para a polícia. Mas os policiais estavam muito atarefados.
O tempo corria contra a pressa do repórter... O hoteleiro resolveu ligar para o corpo de bombeiros.
Logo apareceram três deles devidamente paramentados (com machadinha e tudo). Kapuscinski explicou-lhes a situação implorando para que o conduzissem ao correio, e fez isso dando a entender que sua missão era importante para os hondurenhos. Disse que sabia que os hondurenhos são hospitaleiros... Infelizmente não conhecia a cidade, mas gostaria muito de retribuir o acolhimento enviando aquele telegrama à sua agência na Polônia, pois era “muito importante que o mundo soubesse a verdade” sobre como a guerra se iniciara...
Insistiu. Garantiu que havia escrito a verdade e que deviam ajudá-lo a encaminhá-la.
(...)
Os bombeiros conduziram-no pelas ruas escuras... Na esperança de encontrar o caminho de volta ao hotel sozinho, o polonês contava os passos. Sua estratégia não podia dar certo porque, ao chegar no milésimo passo, Kapuscinski já não conseguia entender o mapa que desenhava em sua mente.
Chegaram a uma porta... Um dos bombeiros bateu... A escuridão impossibilitava o reconhecimento... Todavia, após breve troca de palavras, uma voz autorizou a entrada.
Havia apenas um aparelho de telex. No momento ele estava sendo utilizado pelo presidente da República, que se comunicava com o embaixador hondurenho em Washington... O governo estava solicitando a intervenção e ajuda militar dos Estados Unidos.
A ligação apresentava muitos problemas e a todo momento sofria interrupções. Aquela troca de mensagens demorou muito.
Apenas à meia-noite o aparelho foi liberado para Kapuscinski. O operador quis saber se Varsóvia é um país... Enquanto o polonês explicou, o contato foi estabelecido e a mensagem enviada.
(...)
Kapuscinski registra sua imensa felicidade ao cumprir satisfatoriamente a tarefa. Mas ao se despedir do funcionário notou que não conseguiria enxergar o caminho a percorrer até o hotel... O céu encoberto parecia conspirar... Nenhuma luz, e tudo indicava que o retorno seria digno da série “missão impossível”... A cidade totalmente desconhecida parecia-lhe enfeitiçada.
Percorreu as ruas “tateando muros, calhas e grades de vitrines” como se fosse cego. De repente percebeu que havia chegado a uma praça ou cruzamento de avenidas... Concluiu que, além de não saber como chegar ao hotel, não tinha condições de voltar ao correio... Para piorar, desequilibrou-se e derrubou uma lixeira de metal... Como a topografia configurava um aclive, a lata cilíndrica rolou asfalto abaixo provocando barulho que despertou os moradores... Curiosos abriram janelas... Uns imaginavam que o local estivesse sendo invadido... Outros exigiram silêncio.
Infelizmente para ele, a lata seguia seu curso batendo em postes e paredes... Aquilo podia denunciar um alvo aos inimigos! Sentiu-se um “traidor da cidade” e, apavorado, atirou-se ao chão receando que alguém pudesse disparar contra ele.
(...)
O relato do autor beira ao exagero...
Kapuscinski garante que correu perigo real... Ao jogar-se no chão bateu a cabeça e começou a sangrar pela boca... Não sabe como iniciou uma corrida às escuras, mas foi isso o que decidiu fazer.
Corria e suava em bicas. Imaginava que logo seria alcançado por pessoas enfurecidas portando lanternas e porretes... Porém não foi isso o que ocorreu, pois logo o silêncio voltou a se estabelecer.
Voltou a caminhar lentamente. Sangrava e tinha a camisa rasgada (!)... Sentia-se numa aventura no “fim do mundo”.
Para completar o quadro catastrófico, uma tempestade desabou sobre Tegucigalpa. Relâmpagos permitiram visualizar “prédios velhos e malconservados, uma casa de madeira, um poste e muitos paralelepípedos”.
Conseguiu tatear muros e se esconder num vão... Tentou dormir, mas não teve sucesso... Estava encharcado e tremendo de frio...
Protegeu-se da chuva, mas não do vento gelado.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – o incrível caso do diretor de presídio que decidiu comemorar o gol da seleção mexicana com tiros de revólver; Luis Suarez e Kapuscinski seguiram para Honduras; Tegucigalpa bombardeada; reações do governo hondurenho

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_24.html antes de ler esta postagem:

Além da nota a respeito da manchete de “Jornal dos Esportes” (em texto e gravuras que destacam a “intervenção” de Jesus Cristo para salvar a defesa da seleção brasileira de futebol na disputa contra os ingleses em jogo da Copa de 1970), “A Guerra do Futebol” cita outros episódios que exemplificam extravagantes posturas de torcedores latino-americanos.
Kapuscinski destaca o episódio, também relacionado à Copa no México, em que a seleção da casa venceu a da Bélgica por 1x0... A felicidade tomou conta dos mexicanos de tal forma que passaram a extravasar sua alegria em atitudes temerárias. Esse foi o caso de Augusto Mariaga, que por aquele tempo era diretor do presídio de Chilpancingo... O homem acompanhava a partida pelo rádio e descontrolou-se completamente ao ouvir a narração do gol que levou a seleção à vitória... O tipo correu feito louco de um lado para outro dando tiros de revólver para o alto. Fez uso da arma como se estivesse acionando fogos de artifício... Não bastasse essa excrecência, passou a abrir várias celas e a liberar presos, “criminosos de alta periculosidade”.
O caso teve desfecho curioso, pois o tribunal absolveu o diretor do presídio destacando nos registros do processo que “ele agiu sob o efeito de elevados sentimentos patrióticos”.
(...)
Kapuscinski e o companheiro redator do semanário “Siempre”, Luis Suarez, decidiram partir para Tegucigalpa... Consideraram que a guerra estava para começar e pretendiam cobrir os fatos in loco.
(...)
Mal chegaram à capital hondurenha, viram-se em meio à agitação... A noite se avizinhava quando ouviram o ronco de um avião que sobrevoou a cidade e despejou uma potente bomba. O estrondo assustou a todos os que circulavam pelas ruas do centro... As colinas ecoaram e muitos insistiam que mais de um artefato havia sido lançado.
Na sequência, o pânico... Muitos motoristas abandonaram seus veículos pelas ruas, comerciantes fecharam estabelecimentos e a correria em busca de proteção foi geral... Notava-se o desespero nas fisionomias das pessoas em busca crianças e parentes que se perderam no tumulto.
Tegucigalpa tornou-se escura e silenciosa... Ao que tudo indica o apagão foi uma orientação das autoridades.
Kapuscinski dirigiu-se apressadamente ao hotel para redigir um telegrama à PAP. Seu prédio também estava às escuras, então teve certa dificuldade para alcançar o quarto.
(...)
O rádio de pilha transmitia um comunicado do governo... Em síntese afirmava-se que o país fora atacado por El Salvador, e isso ocorria “em todas as frentes”... O polonês sabia que era o único correspondente europeu no país e seu senso dizia-lhe que devia agir imediatamente. Acendeu a luz do quarto e pôs-se a datilografar.
O texto que começou a produzir evidenciava à PAP que Tegucigalpa havia sofrido ataque da aviação salvadorenha; outras três cidades também tinham sido bombardeadas ao mesmo tempo em que as tropas inimigas ultrapassavam a fronteira e se instalavam no interior; Honduras estava reagindo atacando “alvos industriais e estratégicos de El Salvador”.
Antes de terminar sua redação, Kapuscinski ouviu gritarem da rua que a luz devia ser apagada. Foi com o auxílio de fósforos que finalizou o seu texto... Na parte final afirmava que o rádio informara que Honduras partira para o revide causando consideráveis perdas aos agressores; o governo estava convocando o país para defender a pátria e apelava à ONU para que condenasse as agressões que haviam sido iniciadas por El Salvador.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 24 de maio de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – Honduras x El Salvador, o jogo “de volta” pelas eliminatórias da Copa do Mundo de futebol de 1970; revanchismo e intolerância nas arquibancadas do La Flor Blanca; agressões físicas e assassinatos; fechamento da fronteira, a guerra se aproxima; impressões do autor sobre o fanatismo e outros exageros latino-americanos; o futebol como “ópio do povo”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard.html antes de ler esta postagem:

O mínimo que se pode dizer a respeito da atmosfera em torno do jogo que ocorreria no Estádio Nacional de La Flor Blanca é que havia um clima de guerra mesmo antes da partida iniciada... Do lado de fora a Guarda Nacional cercou o local munida de armas de grosso calibre... Das arquibancadas ouviam-se os mais terríveis impropérios contra os atletas adversários... Durante a execução do hino hondurenho o ambiente foi preenchido de vaias e mais xingamentos. Em vez de bandeira do país, “um pano esfarrapado” foi içado no mastro.
Os jogadores visitantes não pensavam sobre o que podiam desempenhar em campo... Preocuparam-se antes de tudo com a própria vida... Retornariam sãos e salvos ao seu país?
(...)
El Salvador venceu por 3 a 0... O técnico de Honduras manifestou seu alívio concluindo que a derrota era o que de melhor poderia ocorrer para sua equipe. Após a partida os atletas foram conduzidos em carros de combate até o aeroporto e, pelo menos para eles, o pior fora superado.
Torcedores hondurenhos que se arriscaram a assistir à partida no Estádio Nacional de El Salvador passaram por um verdadeiro sufoco... Eles sofreram todo tipo de agressão à saída. Foram agredidos com socos, pontapés e pedradas... Fugiram como puderam em direção à fronteira, e canta-se que pelo menos “dois foram mortos pelo caminho e dezenas de outros acabaram hospitalizados”.
Muitos torcedores hondurenhos foram alcançados na estrada. O saldo é assustador: cento e cinquenta automóveis acabaram incendiados.
Poucas horas depois, a fronteira entre Honduras e El Salvador foi fechada.
(...)
As informações se espalharam rapidamente...
Como se sabe, Kapuscinski estava no México quando esses episódios se sucediam na América Central... Foi o seu companheiro na estadia, Luis Suarez, quem comentou a respeito da tragédia ao mesmo tempo em que apostava que uma guerra entre Honduras e El Salvador era iminente.
Foi com Suarez que Kapuscinski aprendeu que a “fronteira entre a política e o futebol é tênue” na América Latina. Sem entrar em detalhes, o polonês sentencia que vários governos se desmantelaram por causa de derrotas das seleções de seus países... De modo exagerado, dizia-se que os que sofriam derrotas nos campos de jogo eram “traidores da pátria”.
(...)
Sabe-se que a seleção brasileira de futebol sagrou-se campeã no torneio do México em 1970. Muitos especialistas consideram que o time comandado por Mário Zagalo era quase imbatível... Sem dúvida é um dos melhores da história do esporte.
Kapuscinski registra que ouviu de um colega brasileiro que o triunfo desportivo de 1970 resultaria em mais “cinco anos pacíficos” de governo dos militares de direita que haviam derrubado o presidente João Goulart em 1964.
Com isso, queria dizer que as alegrias do futebol levavam as pessoas a se distanciarem dos problemas políticos... Ainda segundo o autor, no caso específico do Brasil, a paixão pelo futebol se misturava a superstições e crenças na intervenção divina na definição dos resultados... Há quem diga que isso vale também para o tempo presente!
A constatação de Kapuscinski se sustenta numa evidência que ele mesmo coletou a partir da manchete de “Jornal dos Esportes”, do Rio de Janeiro, que destacava (por ocasião da vitória do Brasil sobre os ingleses na mesma Copa de 1970) através de texto e gravuras que “Jesus defende o Brasil”, pois “toda vez que a bola corria em direção à nossa defesa e o gol parecia inevitável, Jesus baixava Sua perna do céu e chutava a bola para fora”.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas