quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – o golpe de 19/06/1965; sobre Tahar Zbiri e Houari Boumédiène; de boatos e versões sobre o paradeiro de Ben Bella após a invasão à Villa Joly

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/12/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_30.html antes de ler esta postagem:

O golpe contra Ben Bella tinha tudo para dar certo... Ele vivia sozinho na Villa Joly e, além dos hábitos simples que nutria, pode-se dizer que se tratava de um “tipo distraído”...
O comandante dos insurgentes, Houari Boumédiène, e o ministro Bouteflika, bem-articulados golpistas eram vizinhos de Ben Bella... O local onde o golpe havia sido tramado também ficava na região... Além do quartel-general havia os alojamentos militares...
No momento da troca da guarda, às duas da manhã, homens comandados por Tahar Zbiri (chefe do Estado-maior do Exército Popular da Argélia) tomaram o posto diante da casa do presidente. Com isso o golpe propriamente dito teve início.
(...)
Ben Bella e os personagens golpistas citados haviam participado ativamente da luta de independência...
É importante que se saiba que Zbiri, por exemplo, tinha sido comandante guerrilheiro na região da capital (Villa I)... Ficara conhecido por seu destemor e capacidade militar extraordinária.
Após a independência, os homens mais próximos a Boumédiène foram elevados a uma condição de preeminência... Esse não foi o caso de Zbiri, que ficou à margem da elite militar...
De acordo com Kapuscinski, era provável que Ben Bella desconfiasse que Boumédiène um dia lhe passasse a “rasteira”... Talvez por isso tenha escolhido Zbiri para chefe do Estado-maior... Talvez esperasse que ele o defendesse dos ataques ao seu comando.
Todavia Zbiri não só revelou-se golpista de primeira linha como comandou pessoalmente os oficiais que entraram na Villa Joly no dia 19 de junho... Na ocasião, o pessoal do Estado-maior trajava os “uniformes de campanha” e portava armas automáticas... A ocupação da Avenue Franklin Roosevelt dava conta de que o golpe seria mesmo bem sucedido... Tudo foi acertado para que Boumédiène* ocupasse o poder, o que de fato ocorreu.

                                                           * O golpe contra Ben Bella levou Boumédiène imediatamente à presidência do país. Seu mandato se iniciou no dia do golpe em 1965 e terminou em 27 de dezembro de 1978, data de seu falecimento.

Se Ben Bella tinha planos para o outrora companheiro de luta pela independência, tudo se esvaía no instante mesmo em que ele o enxergara no comando dos que empunhavam metralhadoras apontadas em sua direção. 
(...)
É claro o registro anterior tem muito de especulação de Kapuscinski... Mas é certo que ele mesmo possuía informações que obteve no contato com Ben Bella e seu staff num passado recente... Também há que se destacar que os episódios ocorridos na Argélia repercutiram imediatamente... Dessa forma, apesar de não terem ocorrido “pronunciamentos oficiais” imediatamente após o golpe, podemos dizer que “no calor da hora” muitas informações e versões puderam ser analisadas.
Ele mesmo esclarece que havia muitas contradições e especulações... Mas foi a partir delas que construiu um “panorama crítico” (suas conclusões, aliás, podem ser confrontadas com os episódios que marcaram os últimos cinquenta anos no país).
Imediatamente após o golpe algumas versões foram mais difundidas... Dizia-se Ben Bella tinha sido assassinado... Outros garantiam que ele estava ferido com gravidade ou muito adoentado. Muita gente acreditava que ele tinha sido preso e que havia sido encaminhado para um navio nas proximidades de Argel... Também podia estar sendo mantido prisioneiro no Saara...
Como podemos observar não foram poucas as hipóteses levantadas sobre o paradeiro de Ben Bella após a sua queda...
Aos poucos passaram a admitir que talvez ele fosse mantido na Villa Joly, o “local ideal” para os homens de Boumédiène mantê-lo sob vigilância...
Depois de algum tempo divulgaram a “versão oficial” que “dava conta” de que Ben Bella estava vivo, em território argelino e “bem tratado”.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – sobre Ahmed Ben Bella, curiosidades e características de sua personalidade excêntrica; golpe militar depois de dois anos de independência da Argélia; Bouteflika, então ministro das Relações Exteriores, apreciador de partidas de futebol e golpista

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/12/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_29.html antes de ler esta postagem:

Também em 1965 Kapuscinski escreveu sobre os acontecimentos políticos na Argélia... O país ainda não completara três anos de sua independência em relação à França (julho de 1962) quando o seu primeiro presidente, Ahmed Ben Bella, foi destituído do poder por um golpe militar (19/junho/1965).
Kapuscinski apresenta a sua análise sobre o panorama do país e as possíveis causas de sua instabilidade. Faz isso destacando a histórica resistência argelina aos colonizadores, as personalidades político-militares, as características de alguns deles e da sociedade de então.
(...)
Ben Bella foi destituído às duas da manhã, num momento em que ocorria a mudança da guarda...
O autor de A Guerra do Futebol explica que ele era um tipo muito simples... Sua casa, chamada de “Villa Joly”, situava-se na Avenue Franklin Roosevelt, a meio caminho do ambiente dos mais ricos (o luxuoso bairro “Hydra”, que era repleto de mansões) e do centro de Argel, conhecido pela alta concentração populacional e temperaturas mais elevadas.
Ele vivia sozinho e não tinha hábitos extravagantes... O carro que utilizava era um Peugeot de modelo simples (um 404, que em outros países da África transportava funcionários de baixos escalões e, no máximo, diretores de departamentos)... Modesto, alimentava-se apressadamente e sem regularidade. E mesmo os seus ternos chamavam a atenção por não serem de melhor qualidade.
(...)
O presidente, que contava quarenta e seis anos, não se importava com essas aparências...
Kapuscinski tivera oportunidade (em Addis Abeba) de conhecê-lo pessoalmente dois anos antes desse golpe militar. As impressões mais marcantes que ficaram de Ben Bella foram a sua aparência jovem e também a sua obstinação impulsiva... Ele aparentava contar uns dez anos menos, e seu “estado de espírito” mudava de uma hora para outra... E isso fazia dele um tipo inquieto e agitado por temas que discutia apaixonadamente... Às vezes podia ocorrer de pronunciar graves juízos de modo empolgado e, no instante seguinte, demonstrar-se arrependido sem assumir responsabilidade pelos equívocos.
Sem citar nome, o autor diz que um de seus antigos colaboradores admitiu que, no governo, Ben Bella adotava esse mesmo procedimento... Segundo ele, não seria de estranhar que logo as pessoas ficassem sem saber o que esperar de sua parte.
(...)
Sabe-se que durante a época em que esteve preso (1956-1962), Ben Bella podia ficar durante muito tempo na mais completa quietude, totalmente imóvel e sem movimentar sequer um único músculo de sua face... Passado o seu momento de relaxamento, despertava e proferia frases acompanhadas de gestos vigorosos... Depois, como se estivesse cansado, voltava a se acalmar e sorria para os interlocutores...
Também por isso ele chamava a atenção das pessoas... Muitos ficavam fascinados com a sua presença incomum... Difícil saber se (em seu interior) ele era um tipo perturbado...
(...)
Outra característica marcante de Ben Bella era o fato de ser um apaixonado por futebol (sabe-se que atuou como jogador num famoso clube francês durante uma temporada)...
Mesmo depois que assumiu a vida pública não deixou de apreciar partidas futebolísticas... Inclusive seus compromissos políticos eram entremeados por jogos em que ele fazia questão de atuar.
Nessas ocasiões também participavam ministros como Abdelaziz Bouteflika* (das Relações Exteriores), que não perdia a oportunidade sempre que podia calçar as chuteiras para correr atrás da bola...
De acordo com Kapuscinski, Bouteflika viria a ser um dos principais articuladores e coordenadores do golpe contra Ben Bella.
                                                           * Abdelaziz Bouteflika é o atual presidente da
                                                           Argélia (seu mandato se iniciou a
                                                           27/abril/1999).
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

“Apartheid” – fragmentos de documentos sobre o fundamentalismo religioso da Igreja africânder

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/12/apartheid-fragmentos-de-documentos_65.html antes de ler esta postagem:

Fragmentos de documentos selecionados por Kapuscinski para o seu A Guerra do Futebol no capítulo em que trata da África do Sul e seu regime de segregação racial (1965).

Os africânderes fundamentavam-se em sua religião.

A Igreja africânder ensinava que a segregação tinha explicação bíblica. Dessa forma, na luta do Bem contra o Mal, os brancos tinham a missão de concretizar as “promessas de Deus”, os negros deviam ser submetidos e estariam fadados ao extermínio divino.
Também graças a isso, os africânderes impuseram-se politicamente e nutriram-se de determinação para resistir até o fim (contra todos) em sua “cruzada”. Pois eram convictos de sua “predestinação”.

Fragmentos de G.D. Scholtz – historiador africânder:

                                                           A religião tornou possível a sobrevivência africânder entre os negros, já que lhes permitiu comparar o seu papel com o representado pelo povo bíblico de Israel – assim como era proibido a um israelense misturar-se com os pagãos, os africânderes consideram uma proibição divina misturar-se com aqueles que não têm pele branca.

Fragmentos extraídos de The History of apartheid, de L. E. Neame (1962):

                                                           Ameaças e advertências não surtem efeitos sobre os africânderes. Um observador de fora não tem condições de imaginar com que força interior os africânderes tratam das questões de raça e do futuro de sua nação. Nesse campo, não há para ele nenhuma possibilidade de compromisso. Trata-se de calvinistas que acreditam fanaticamente que Deus os encaminhou para a África do Sul, que os conduziu por inúmeros perigos, e eles se mostram prontos a morrer em defesa de seu destino. Acreditam que, ao colocá-los na África do Sul, o Onipotente confiou-lhes uma missão divina e que é sua obrigação defender o país para seus filhos e netos. Eles se trancam em sua fortaleza, dispostos a enfrentar uma nova guerra contra hordas de bárbaros e, caso a Providência abra um túmulo diante deles, entrarão nesse túmulo – lutando.

Fragmentos de A. B. Dupresh – um teólogo africânder muito influente no governo:

                                                           Se tivermos que desaparecer do sul da África e o nosso destino for morrer como Nação Branca, anunciamos ao mundo todo, em sã consciência e em nome da nação dos africânderes, que preferiremos desaparecer, como deseja Deus, que dirige o nosso destino, a cometer o suicídio que seria assumir o caminho da integração e da assimilação com os negros, Se os não-brancos nos massacrarem será um novo triunfo da barbárie, que Deus tão milagrosamente evitou às margens do Rio de Sangue (batalha contra os zulus, vencida em 1882 pelos africânderes). Apesar disso, acreditamos piamente que Deus, na Sua grandeza, continua a zelar pelo destino de nossa nação. Preferimos morrer confiantes na predestinação a nos ligar aos negros, perdendo assim nossa singularidade e traindo a missão que Ele nos confiou.
A imagem selecionada para ilustrar a postagem foi extraída de http://www.abcdesign.com.br/especial/design-subversivo/.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“Apartheid” – fragmentos de documentos sobre a radicalização contra a integração e a “grande migração africânder” no século XIX; união do nacionalismo africânder aos interesses imperialistas britânicos

Fragmentos de documentos selecionados por Kapuscinski para o seu A Guerra do Futebol no capítulo em que trata da África do Sul e seu regime de segregação racial (1965).


Os africânderes não aceitavam a integração e tampouco cessão de direitos aos negros.
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Fragmento do diário de Anna Steenkamp (1838) – africânder da época da “grande migração” (Great Trek) após a abolição da escravidão pelo Parlamento inglês (1836):

                                                           Os escravos foram alçados ao mesmo nível dos cristãos, o que é contrário aos desígnios divinos e à ordem da natureza, que dividiu as raças de acordo com a cor da pele. Para qualquer cristão honesto, aquilo equivalia a ser posto de joelhos e ter os braços presos por correntes. Por isso preferimos partir, querendo manter nossa crença na pureza da raça.

(...)

União Sul-Africana e seu governo caracterizado pelo acordo entre o nacionalismo africânder e os interesses econômicos britânicos.

Mesmo após a derrota sofrida na Segunda Guerra dos Bôers (1899-1902), os africânderes conseguiram impor compromissos ao império britânico.

Fragmento de “Story of South Africa” (publicado durante a década de 1950), de Leo Marquand - O interesse inglês pela exploração de diamantes e ouro, e também pelos promissores investimentos no sul do continente superava sua oposição ao radicalismo africânder:

                                                           A descoberta dos diamantes em Kimberley, em 1870 (...) mudou o curso da história do país. Pessoas e dinheiro afluíram para lá como um rio caudaloso. Aos poucos, homens como Cecil Rhodes e Barney Barnato assumiram o controle da exploração de diamantes e construíram fortunas fenomenais, que permitiram, mais tarde, o desenvolvimento da mineração do ouro do Transvaal e a expansão do império britânico para o norte.

A imagem selecionada para ilustrar a postagem foi extraída de http://www.abcdesign.com.br/especial/design-subversivo/.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – a Igreja africânder e sua fundamentação ideológica à segregação racial; interpretação de textos bíblicos, “dogmas de fé” e convicção de “escolhidos de Deus”; fragmentos de G.D. Scholtz, L. E. Neame e A. B. Dupresh

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/12/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_27.html antes de ler esta postagem:

A África do Sul havia conquistado sua independência em relação à Inglaterra em 1961... Em meados daquela década de 1960 o mundo queria entender como a minoria branca submetia toda população africana do país aos horrores do apartheid...
(...)
Kapuscinski explica que três componentes que constituíam a “atitude e visão de um africânder médio” deviam ser entendidos... O primeiro deles era a própria posição (marcada profundamente pelo seu passado) que haviam conquistado no país... Os outros dois elementos seriam a Igreja e o partido africânder.
Em 1912 havia sido formado o primeiro partido africânder... E eles só chegaram ao poder em 1948... Porém a sua Igreja datava desde o século XVII, quando os primeiros colonos começaram a se instalar no extremo sul do continente. Da Europa, eles traziam o Calvinismo...
A Igreja dava-lhes unidade e toda fundamentação que necessitavam para se sentirem diferenciados em relação aos demais povos... Se não podiam ter um país e Parlamento exclusivos, tinham a Igreja que, mais do que doutrinação religiosa, fornecia o embasamento ideológico que permitiria a fundação do partido político que viria a assumir o poder.
A Predestinação sustentada pelo Calvinismo era levada muito a sério pelos africânderes, que entendiam que os seres humanos nasceram bons ou maus... A ordem natural estava bem definida e, dessa maneira, aprendiam e ensinavam que uns nascem para mandar naqueles que devem obedecer... Ainda de acordo com o ensinamento, eles (que haviam nascido na fé) eram superiores aos pagãos. Não tinham a menor dúvida de que seriam salvos e de que sua existência cumpria desígnios divinos.
Também de acordo com o que aprendiam e ensinavam estava a máxima de que os brancos eram os abençoados por Deus, enquanto que os negros eram os amaldiçoados que certamente seriam levados à extinção... O negro jamais poderia mudar a cor da pele... Essa era, então, uma “mácula determinada por Deus”... Os negros deviam se conformar com sua condição e servir aos brancos.
Ainda de acordo com o autor de A Guerra do Futebol, a Bíblia foi o único livro que os africânderes levaram quando partiram para o isolamento das terras mais distantes durante o Great Trek... Em suas consciências, imaginavam representar o bastião em defesa da religião mais pura, já que os primeiros de sua gente haviam deixado a Europa por causa das perseguições religiosas impostas por autoridades eclesiásticas que exigiam que livros e homens fossem lançados à fogueira.
Pode-se dizer que “a Bíblia foi o único livro lido pelos africânderes” por décadas... Kapuscinski esclarece que a maioria deles era analfabeta, então os textos bíblicos que conheciam foram-lhes transmitidos oralmente. A todas temáticas aplicavam a dicotomia branco/negro, sendo que o Bem e a Salvação se aplicavam ao Branco... Já o Mal e a Danação só podiam se aplicar ao Negro... Diziam que Hiob (Jó) sofrera ao notar que sua pele havia se tornado negra “por causa de seus pecados”... Assim como este, muitos outros trechos bíblicos eram interpretados pelos africânderes de modo a reforçar o seu racismo, entendido como “dogma de fé”.
Dessa maneira, qualquer opinião a respeito de cessão de direitos aos negros era vista por eles como blasfêmia e ultraje à sua crença e Igreja.
Os africânderes assumiam plenamente a condição de “povo escolhido” e essa máxima esteve incutida nos discursos oficiais e na literatura produzida para o seu povo...
Na finalização dessa temática, Kapuscinski apresenta três importantes fragmentos que nos ajudam a problematizar a complexa lógica africânder e a intolerância imposta pelo regime segregacionista do apartheid.

Fragmentos de G.D. Scholtz – historiador africânder:
                                                           A religião tornou possível a sobrevivência africânder entre os negros, já que lhes permitiu comparar o seu papel com o representado pelo povo bíblico de Israel – assim como era proibido a um israelense misturar-se com os pagãos, os africânderes consideram uma proibição divina misturar-se com aqueles que não têm pele branca.

Fragmentos extraídos de The History of apartheid, de L. E. Neame:
                                                           Ameaças e advertências não surtem efeitos sobre os africânderes. Um observador de fora não tem condições de imaginar com que força interior os africânderes tratam das questões de raça e do futuro de sua nação. Nesse campo, não há para ele nenhuma possibilidade de compromisso. Trata-se de calvinistas que acreditam fanaticamente que Deus os encaminhou para a África do Sul, que os conduziu por inúmeros perigos, e eles se mostram prontos a morrer em defesa de seu destino. Acreditam que, ao colocá-los na África do Sul, o Onipotente confiou-lhes uma missão divina e que é sua obrigação defender o país para seus filhos e netos. Eles se trancam em sua fortaleza, dispostos a enfrentar uma nova guerra contra hordas de bárbaros e, caso a Providência abra um túmulo diante deles, entrarão nesse túmulo – lutando.

Fragmentos de A. B. Dupresh – um teólogo africânder muito influente no governo:
                                                           Se tivermos que desaparecer do sul da África e o nosso destino for morrer como Nação Branca, anunciamos ao mundo todo, em sã consciência e em nome da nação dos africânderes, que preferiremos desaparecer, como deseja Deus, que dirige o nosso destino, a cometer o suicídio que seria assumir o caminho da integração e da assimilação com os negros, Se os não-brancos nos massacrarem será um novo triunfo da barbárie, que Deus tão milagrosamente evitou às margens do Rio de Sangue (batalha contra os zulus, vencida em 1882 pelos africânderes). Apesar disso, acreditamos piamente que Deus, na Sua grandeza, continua a zelar pelo destino de nossa nação. Preferimos morrer confiantes na predestinação a nos ligar aos negros, perdendo assim nossa singularidade e traindo a missão que Ele nos confiou.

Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 27 de dezembro de 2015

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – as guerras dos boers contra os ingleses; de campos de concentração, tratado de Vereeniging e formalização da União Sul-Africana; sobre a união do nacionalismo africânder à expansão imperialista britânica; fragmentos de Leo Marquand (década de 1950)

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O domínio britânico se estabeleceu na primeira metade do século XIX... Os ingleses nomearam um governador, instalaram uma administração, criaram impostos, lavraram decretos e impuseram o inglês como língua oficial...
Para os fazendeiros africânderes tudo isso foi como que se os conquistadores apertassem uma corda em seus pescoços... Mas a “gota d’água” foi mesmo a abolição da escravidão... Por causa dela teve início o Great Trek, que marcou sua retirada em massa para áreas mais afastadas da cidade do Cabo...
Kapuscinski esclarece que eles se consideravam “escolhidos de Deus”, e que Ele os havia predestinado a conquistar toda a África do Sul, sua “nova pátria”... Então era como se estivessem numa cruzada para “libertar a Terra Santa da barbárie dos negros”... Estavam convictos de que partiam para a “Terra Prometida”...
(...)
Embora se pudesse alegar que a grande marcha africânder tivesse motivações religiosas, sabe-se que ela provocou situações semelhantes aos dos movimentos campesinos medievais (que resultaram em violentos ataques em nome de pretensa religiosidade)...
Os africânderes provocaram saques, assassinaram dezenas de milhares de africanos, queimaram povoados e roubaram rebanhos... Natal (tomada pelos ingleses em 1842, um ano depois da fundação), e também o Transvaal e o Orange, são resultados de seus avanços. Muitos deles atingiram terras de Moçambique e do que seria atualmente o Zimbabwe... 
(...)
Durante algum tempo os procedimentos africânderes nas Repúblicas do Transvaal e do Orange não despertaram nenhuma ação concreta dos ingleses... Porém a descoberta de ouro no Transvaal na década de 1880 (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/12/contribuicao-para-um-entendimento-da.html) alterou completamente esse quadro...
Logo no primeiro ano (1880-81) ocorreu o que se chama de “Primeira Guerra dos Boers”, marcada por pressões diplomáticas dos britânicos, que resultou em favorável à autonomia das referidas repúblicas africânderes.
Porém ocorreu que a grande quantidade do metal precioso atraiu exploradores do mundo inteiro... Os ingleses quiseram fazer valer sua supremacia e impor aos fazendeiros africânderes o seu “direito exclusivo” na exploração... Os “boeren” se espantaram com a movimentação gerada pelo afluxo de estrangeiros e também com a instalação dos modernos equipamentos.
Aquilo não podia mesmo acabar bem... Os africânderes começaram a impedir o transporte ferroviário e o abastecimento das minas... Além disso, proibiram os ingleses de circularem armados na república. Instalações, acampamentos e povoados britânicos sofreram ataques.
O conflito que se estendeu de 1899 a 1902 é conhecido como “Segunda Guerra dos Boers”. Ele foi marcado pela destruição de fazendas, que foram transformadas em campos de concentração onde os ingleses aprisionavam principalmente as mulheres africânderes e seus filhos... Kapuscinski registra que “cerca de vinte e seis mil” morreram de fome ou epidemias...
(...)
Os africânderes, que recebiam armamentos alemães, classificaram a guerra como “escandalosa” porque ela colocara “brancos exterminando brancos” sob os olhares de negros.
Em A Guerra do Futebol lemos que a vitória britânica, apesar de formal, “não foi real” e pode-se dizer que impôs um compromisso ao império que, pelo Tratado de Vereeniging, teve de pagar indenizações para os africânderes reconstruírem suas fazendas comunitárias...
As atrocidades dos campos de concentração jamais foram esquecidas e os africânderes sempre fizeram questão de relembrá-las aos ingleses.
Quando a União Sul-Africana (já prevista pelo tratado de Vereeniging) foi criada em 1910, Louis Botha (general africânder) foi escolhido para exercer o cargo de Primeiro-Ministro... Seu governo era composto de seis compatriotas e de quatro ingleses... Para Kapuscinski, que escreveu sobre essas considerações em 1965, o governo sul-africano foi resultado dessa união de compromissos entre o nacionalismo africânder e “a expansão econômica do imenso capital britânico”.
Ele selecionou significativos fragmentos de Leo Marquand (autor de “Story of South Africa”, publicado durante a década de 1950) que justificam suas opiniões destacadas no parágrafo anterior:

                                                           A descoberta dos diamantes em Kimberley, em 1870 (...) mudou o curso da história do país. Pessoas e dinheiro afluíram para lá como um rio caudaloso. Aos poucos, homens como Cecil Rhodes e Barney Barnato assumiram o controle da exploração de diamantes e construíram fortunas fenomenais, que permitiram, mais tarde, o desenvolvimento da mineração do ouro do Transvaal e a expansão do império britânico para o norte.

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Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 26 de dezembro de 2015

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – sobre a autonomia africânder desde os primórdios da ocupação no extremo sul da África; conflitos por terras férteis e gado; conquista britânica e incompatibilidades; o “great trek”, características e motivações; fragmento do diário de Anna Steenkamp (1838)

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/12/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_25.html antes de ler esta postagem:

A empreitada colonial no sul da África foi obra de particulares... O governo holandês não participou ou interferiu diretamente na iniciativa de colonos que se aventuraram na conquista de vastidões...
Para o autor, não era por acaso que os africânderes diziam que aquele país pertencia exclusivamente a eles... Eles se acostumaram à autogestão... Insistiam que haviam ocupado uma “terra de ninguém” (obviamente uma “mentira deslavada” ainda que os baixos índices populacionais fossem uma realidade) e, assim, cada colono tornou-se livre para “construir um país que pudesse chamar de seu”.
De fato, uma vez acomodados, os africânderes se sentiam tentados a constituir propriedades de onde não conseguissem divisar “a fumaça de chaminé de seu vizinho mais próximo”.
(...)
Na região do Cabo e também em Natal (locais de “clima mediterrâneo” elogiados por suas belezas naturais e pela fertilidade de suas terras propícias aos vinhedos) os boeren dedicaram-se à agricultura e à criação de gado... Logo notaram que tribos nômades locais possuíam rebanhos bovinos... Eles não pestanejaram ao impedir que os africanos utilizassem as terras (como faziam há muitas gerações), além disso, roubavam o seu gado...
Nada barrava os africânderes em suas iniciativas... Não tinham de obedecer a nenhuma prerrogativa legal externa... Cada vez mais foram se apropriando das terras sul-africanas, onde criavam suas próprias leis... Isso durou uns cento e cinquenta anos... O racismo, a desenfreada sede de posse e de autogoverno marcou a “faceta africânder”.
Os escravistas obtinham a mão-de-obra que exploravam em suas terras nos mercados locais ou a partir dos incessantes conflitos com os nativos por “pastos adequados” pelas terras férteis (que não eram abundantes, já que apenas umas 15% delas são “adequadas às plantações e dispensam investimentos com irrigação”).
(...)
Os ingleses ocuparam o Cabo em 1806, tornaram-se senhores da localidade e fizeram da cidade a capital de sua “colônia britânica”... Obviamente os conquistadores, conhecidos por seu “eficiente burocratismo”, não aceitaram o desregrado modo de viver dos africânderes.
É preciso entender que o tempo que separa este episódio da época em que os africânderes se instalaram no sul da África (meados do XVII) foi marcado por várias transformações na Europa (Liberalismo propagado pelo movimento Iluminista, Revolução Francesa...) que os agropastoris boern não tinham a menor ideia... Perante os modernos ingleses que chegavam, eles podiam ser comparados a “relíquias feudais”.
Em 1836 o Parlamento inglês aboliu a escravidão... Isso contrariava a tradição africânder duplamente... Primeiro porque o escravismo estava na base de suas relações produtivas, depois porque sua religião ensinava que Deus havia criado aqueles negros todos “para serem escravizados” por eles...
Essa incompatibilidade que já se anunciava desde o ano anterior explica os motivos da grande migração (Great Trek) que resultou na fundação das Repúblicas africânderes de Natal (1840), Transvaal (1848) e Estado Livre de Orange (1854)... Para as difíceis marchas, os boern se organizavam em grandiosas caravanas (havia também os que partiam solitários)...
Durante vinte anos os fluxos migratórios mais para o norte prosseguiram... Os africânderes levavam suas famílias, o gado e os escravos que tinham conseguido acumular.
Kapuscinski selecionou um fragmento de texto de diário de Anna Steenkamp, escrito em 1838, primeiros tempos do Great Trek...
A leitura nos permite entender que a migração tinha (também) fundamentação filosófico-religiosa:

                                                           Os escravos foram alçados ao mesmo nível dos cristãos, o que é contrário aos desígnios divinos e à ordem da natureza, que dividiu as raças de acordo com a cor da pele. Para qualquer cristão honesto, aquilo equivalia a ser posto de joelhos e ter os braços presos por correntes. Por isso preferimos partir, querendo manter nossa crença na pureza da raça.

Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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