terça-feira, 23 de junho de 2015

“Círculo de Giz” – com a Cia. Paideia

Círculo de Giz estreou no dia 22 de maio no Pátio de Coletores de Cultura, o espaço da Cia. Paideia.
Não há como não destacar aqui o singelo modo como somos recebidos pelos atores... Eles surgem animadamente no salão em que todos aguardam a abertura das portas... Acompanhados de instrumentos cantam uma reflexão a respeito da existência humana neste mundo... Ao mesmo tempo agradecem a presença do “distinto público”, que é convidado a se acomodar para o início da encenação.
(...)
A peça de 70 minutos (tem direção de Amauri Falseti) e nos remete a dois interessantes cenários: o hospital onde um garoto está internado; e a antiga China.
No hospital, médicos e enfermeiros dão total atenção ao menino... Também a mãe não esconde sua preocupação com o estado da criança... A mulher é devotada e demonstra que todo cuidado dispensado ao filho é pouco.
Para o paciente a estadia é enfadonha... Então ele propõe realizar uma encenação que representa sua história... Ele contou com a colaboração de médicos, enfermeiros e da própria mãe.
(...)
Quem conhece o texto de Peter Weiss, Marat/Sade, fica tentado a associar o enredo de Círculo de Giz àquele que tem ambientação num manicômio onde os internos (dirigidos pelo marquês de Sade) encenam o assassinato de Marat.
A peça também nos remete ao texto de Brecht, O Círculo de Giz Caucasiano.
(...)
Mas Círculo de Giz é peça infantil e tem encanto próprio.

A encenação segue com excelente trilha musical:
Na antiga China, uma jovem ficou órfã após seu pai ter sido assassinado por um mandarim... Desamparada, tornou-se serviçal numa casa de chá, onde homens importantes apareciam também para curtir a companhia de garotas. Tanto é que numa ocasião conheceu o filho do imperador, por quem se apaixonou...
Mas, em vez de vida pacata, o destino reservou-lhe uma tragédia... Seus encantos atraíram o mesmo mandarim assassino de seu pai. O homem a comprou e a tornou sua concubina.
O mandarim passou a “ter olhos” apenas para ela... Um filho foi gerado... Tudo isso fez com que a primeira esposa se enchesse de raiva... Não foi por acaso que ela envenenou o marido, tomou a criança como se fosse um filho seu e acusou a jovem de ter assassinado o mandarim.
Sem deixar de ser engraçada, a parte do julgamento nos leva a refletir a respeito da “justiça dos homens” e sobre como os mais frágeis sofrem a “dureza da lei”.
(...)
O teatro fica na Rua Darwin, 153; Santo Amaro.
Entradas: R$20,00 – inteira; R$10,00 – meia.
17:00 – sábados e domingos até 5 de julho. Há apresentações especiais para escolas.
Mais sobre o elenco e a peça em www.paideiabrasil.com.br

Indicação (a partir de 9 anos)
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 19 de junho de 2015

“Índios do Brasil”, de Julio Cezar Melatti – fragmentos de “Viagem à terra do Brasil”, de Jean de Léry; a “visão” do velho tupinambá; um pouco sobre o cronista, França Antártica e perseguições aos protestantes

Jean de Léry contava vinte anos de idade em 1556 quando partiu para a França Antártica (colônia protestante fundada pelo francês Nicolas Durand de Villegagnon na Baia de Guanabara no ano anterior).
(...)
Aquela época era de conflitos religiosos provocados pelo desentendimento entre católicos e reformados... Isso explica a tentativa de formar a colônia com famílias protestantes, ainda em que território proibido pelo Tratado de Tordesilhas (1494). O Brasil era palco da disputa entre portugueses e franceses – maírs e perôs, como eram chamados pelos tupinambás - ávidos pelas riquezas (notadamente o pau-brasil) existentes no território.
(...)
Depois de pouco mais de meio ano, Villegagnon desentendeu-se com colonos e missionários calvinistas, entre eles o jovem Léry... Eles acabaram expulsos da França Antártica... Foram acolhidos pelos índios tupinambás que habitavam a região, mas nem todos aceitaram permanecer entre os nativos.
É certo que os que tentaram retornar à segurança da colônia (protegida pelo Forte Coligny) terminaram mortos pelo líder...
Léry é considerado um dos principais cronistas do Brasil dos tempos coloniais... Não há dúvida de que o período em que permaneceu entre os tupinambás (cerca de dois meses) tenha sido de suma importância para os seus registros acerca de impressões sobre a aventura francesa no trópico; sobre aspectos geográficos do lugar; e sobre o modo de ser dos indígenas.
Conta-se que o retorno de Léry para a França foi dos mais traumáticos. Primeiro porque ele e os companheiros improvisaram sua fuga em embarcação precária e sem os recursos necessários para a longa travessia. Em segundo lugar, como não podia deixar de ser, a viagem exigiu sacrifícios imensos... Eles recorreram a meios inusitados para solucionar a falta de víveres. E por fim vale ainda destacar que por pouco não acabaram prisioneiros logo que terminaram sua aventura ao desembarcarem em terras francesas.
(...)
A reprodução de fragmento de documento que segue contempla recorte de conteúdos a partir dos tópicos: História; Cidadania; Ética; Natureza; Preservação da Memória e Patrimônio indígenas da América e do Brasil; Diversidade Cultural.


(...)

Fragmentos de Viagem à terra do Brasil, de Jean de Léry; texto destacado em Os índios do Brasil, de Julio Cezar Melatti.

Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar o seu arabutan (madeira pau-brasil). Uma vez um velho perguntou-me: por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portugueses), buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele supunha, mas dela extraímos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.
Retrucou o velho imediatamente: - e porventura precisais de muito? - Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. - Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, - acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: - Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? - Sim, disse eu, morre como os outros.
Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: - e quando morrem para quem fica o que deixam? - para seus filhos, se os têm, respondi; na falta destes, para os irmãos ou parentes próximos. - Na verdade, continuou o velho, que como vereis, não era nenhum tolo - agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois de nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados (...)

Leia: Índios do Brasil. Editora Edusp.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 10 de junho de 2015

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – Dubreuilh não acreditou nem entendeu os questionamentos de Sézenac a respeito de Henri e o falso testemunho; nada além da verdade; pode-se levar uma vida correta numa sociedade que não o é?; fim da nona parte

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/06/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_10.html antes de ler esta postagem:

Dubreuilh passou a falar a respeito da visita de Sézenac... Comentou que havia sido uma situação bem estranha... Henri explicou que já fazia um bom tempo que o moço havia sido demitido por ele.
Dubreuilh fez referência às perguntas de Sézenac, que queria saber se ele conhecia certo Mercier e também se Henri permanecera em Paris num determinado dia de 1944... Como não entendia os motivos das perguntas, e nem tinha condições de solucionar suas dúvidas, resolveu “despedi-lo secamente”.
Com ares de preocupação, Dubreuilh emendou que Sézenac podia tornar-se perigoso... Ele deu a entender que não acreditava na história que o moço lhe contou...
Em síntese, Sézenac havia dito que Henri dera um falso testemunho para livrar um delator da Gestapo da prisão... E tudo por influência de Josette Belhomme!
Para Dubreuilh aquilo não passava de boato, mas em sua opinião não podiam permitir que aquele mexericose espalhasse ao bel prazer do rapaz... Sua conclusão era a de que Sézenac devia odiá-lo para proceder daquela maneira.
(...)
Henri percebeu que poderia se aproveitar da inocência de Robert naquele caso e, quem sabe, manter a aparência de bom homem... Porém decidiu dizer a verdade e respondeu que a narrativa de Sézenac correspondia à realidade... Achou mesmo que ninguém precisaria ter atitudes melindrosas em relação a ele... Então completou dizendo que dera o falso testemunho para “salvar Josette”.
Dubreuilh quis saber se o tal Mercier era mesmo um delator da Gestapo... Henri confirmou e garantiu que o tipo merecia ser fuzilado... Perguntou se sua atitude era “digna de uma patifaria” e ao mesmo tempo tentou se justificar dizendo que só o fizera para salvar a pequena e que, além do mais, não se perdoaria se ela se suicidasse...
Henri acrescentou que não considerava a libertação de Mercier digna de lamentação... Definitivamente aquilo não lhe tirava o sono, já que um salafrário a mais ou a menos não faria diferença...
Dubreuilh observou que seria preferível “um a menos”... Henri perguntou-lhe se seria correto permitir que Josette se matasse... A resposta reconhecia que a decisão devia ter sido das mais difíceis.
Henri explicou que não demorou a se decidir e, além disso, não podia dizer que estivesse arrependido do que havia feito... Dubreuilh pensou sobre o que ouvia e sentenciou que aquela história provava “que a moral particular não existe”... Algo que eles acreditavam, mas podiam constatar que não tinha o menor sentido... Henri quis deixar claro que no momento em que teve de tomar sua decisão viu-se “emparedado”, sem escolha, porém não havia como não levar em consideração que, se não tivesse se envolvido com Josette, nada teria ocorrido...
(...)
O que Henri queria dizer é que reconhecia que havia falhado ao não resistir aos encantos da garota... Dubreuilh lembrou que dificilmente conseguimos resistir a todas as tentações, sustentou que “o ascetismo é bom quando é espontâneo” e que temos direito a “satisfações positivas”...
É claro que muitas dessas satisfações jamais serão experimentadas por nós... Ele explicou que até mesmo por não realizarmos algumas delas corremos o risco de praticarmos certas tolices. Afinal, pode-se levar “uma vida correta numa sociedade que não o é?”.
Isso, na opinião de Dubreuilh, seria mais um aprendizado... “Não há salvação pessoal possível" dado que fatalmente nos tornamos presas das ciladas que estão sempre à espreita.
Puro fatalismo... Henri estava notando que o outro queria dizer que “não nos resta grande coisa”... Ele quis saber o que Dubreuilh teria feito em seu lugar, mas este o preveniu de que não tinha a menor condição de saber...
Henri topou contar-lhe tudo a respeito do que havia vivenciado.
Fim da nona parte.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – Henri e Dubreuilh revisitam sua atuação política no pós-guerra; uma análise dos fracassos desde os tempos em que a empolgação por independência política havia sido legítima (uma parte II); dificuldades e incoerências em relação aos novos engajamentos

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/06/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_9.html antes de ler esta postagem:

O passado havia sido o tempo em que as posições estavam bem definidas... Havia os companheiros e os inimigos.
Mas então, quis saber Henri, deviam ter ingressado no PC? Dubreuilh respondeu que teriam sido “péssimos comunistas”... Isso era algo que o próprio Henri advertira quando afirmara que “não se podia deixar de existir sob a própria pele”...
A conclusão era a de que nada podiam ter feito...
Para Robert, o PC nada fez... Também os comunistas acabaram encurralados.
(...)
Continuaram a beber...
Henri pensou sobre a ocasião em que dissera a Nadine que lhe faltava tempo para realizar tudo o que pretendia... Mas o que havia a ser feito? Também era de se lamentar que aquilo que aprenderam só passou a fazer parte de suas consciências depois de passarem por todas as amolações... Dubreuilh deixou claro que obviamente não poderiam ter aprendido antes...
Então não havia fracasso a se lamentar... “O erro estava abolido”.
Dubreuilh era “uma impecável vítima da fatalidade histórica”... Todo intelectual francês que se empolgou com a vitória em 1944 nada podia no pós-guerra... Afinal, o que se podia pretender num cenário em que dois gigantes (EUA X URSS) se defrontavam? Era evidente que a França não ocupava posição preeminente...
(...)
Mas e quanto a Henri, de que lhe valeram os incontáveis debates, dúvidas e entusiasmo em torno dessas questões que custaram a mudança de seu posicionamento “de um extremo a outro daquela história”?
Para ele não era fácil admitir (como o outro pretendia) uma “consciência de sua inutilidade”. Dubreuilh quis dar a entender que não se tratava de fatalismo... Ele considerava que não tinham como agir, pelo menos naquele momento específico.
Henri disse que havia lido o ensaio... Questionou sobre a afirmação a respeito de “marchar francamente” junto aos comunistas como condição para os que desejassem “fazer algo”. Dubreuilh justificou que, embora não concordasse com os comunistas, entendia que “aos que se apartavam do agrupamento” não restava grande coisa.
É claro que o fato de não ter ingressado no partido relacionava-se à sua consciência em relação aos rumos que os comunistas haviam dado à revolução... Definitivamente não era o que ele esperava na época de sua juventude... Ele entendia que sua condição era bem diferente da dos mais jovens, então não podia arriscar-se a ingressar nas fileiras do partido porque o seu tempo de envolver-se em situações de risco havia passado...
Também Henri se considerava um tipo sem motivações... Acabou dizendo que gostaria de se retirar para o campo, ou mesmo sair do país... Talvez se dedicasse à literatura... Perguntou se havia algum sentido nisso.
Como que a se desculpar pelo seu radicalismo, Dubreuilh disse que talvez tivesse exagerado em seus textos... Afinal “a literatura não é tão perigosa assim”.
(...)
Encerraram essa conversa...
Dubreuilh passou a falar a respeito de uma estranha visita que Sézenac lhe fizera na véspera...
Evidentemente Henri estava interessado em saber o que o rapaz havia falado ao velho.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 9 de junho de 2015

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – Henri e Dubreuilh revisitam sua atuação política no pós-guerra; uma análise dos fracassos desde os tempos em que a empolgação por independência política havia sido legítima

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/06/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_8.html antes de ler esta postagem:

Robert quis logo saber o que havia ocorrido... Manifestou sua suspeita ao perguntar se Lambert deixara o jornal... Henri explicou que já fazia algum tempo que Trarieux e o rapaz pretendiam debandar para o gaullismo, e isso explicava a dissidência. Falou sobre a discussão com Lambert e esclareceu que tudo se encaminhou para o rompimento após as pressões que ele impôs ao rapaz.
Dubreuilh começou a rir e disse que estavam de volta ao “marco zero”... Haviam lhe subtraído L’Espoir... Também o SRL já não existia.
Henri quis assumir a culpa pelos fiascos... Mas Dubreuilh sentenciou que não havia culpados... Então retirou uma garrafa de armagnac do armário e encheu duas taças.

Enquanto bebiam e trocavam gentilezas, falaram sobre Anne, que ainda estava nos Estados Unidos, de onde deveria regressar em duas semanas... Dubreuilh fez questão de dizer que ela não aceitava o fato de os dois amigos terem rompido e não mais se entenderem... Henri concordou que o litígio entre ambos era mesmo muito estúpido.
Essa conversa foi interrompida quando Dubreuilh quis saber se era verdade que Paule estava curada... Sabia-se que ela seria instalada na casa de Claudie de Belzunce e que, por orientação médica, devia ser mantida distante de Henri.
Dubreuilh parabenizou Henri por, enfim, poder curtir a liberdade que tanto almejara... Então perguntou sobre o que faria com o tempo livre que estava conquistando... Poderia fazer muitas coisas... Henri admitiu que talvez se dedicasse à finalização do romance que não saía de sua escrivaninha, mas deixou claro que alguns remorsos o atormentavam.
A esse respeito, garantiu que se não tivesse se comportado com tanta obstinação as cotas de Lambert seriam passadas para Dubreuilh e, assim, L’Espoir e SRL teriam se mantido firmes.
Robert Dubreuilh sentenciou que, de toda maneira, o SRL estava se encaminhando para a nulidade... O jornal talvez resistisse, mas será que conseguiria se manter independente no momento em que os rivais gaullistas e comunistas mais aqueciam a temperatura política?
A verdade é que nem mesmo a Vigilance tinha garantias de sobrevida independente...
(...)
Falaram sobre essas coisas... Henri tinha certeza de que tinha sua parcela de culpa, mas Dubreuilh prosseguia em sua análise que beirava o fatalismo... Ele deixou claro sua opinião ao reconhecer que após a guerra a disputa passou a ser entre Estados Unidos e União Soviética; e que estava claro que não haveria espaço para a corrente política que defendiam.
Henri ponderou que a Europa, e a França em particular, tinha um “papel a desempenhar”... Dubreuilh respondeu em tom desanimado que a análise que fizeram era das mais equivocadas...
Essas afirmações estavam em consonância com suas declarações em seu ensaio a respeito dos limites dos intelectuais, que nada podem em relação à atuação política e aos rumos da sociedade na conjuntura de pós-guerra... Henri tentou argumentar que já se sabia que eram minoria, mas na ocasião das discussões o próprio Dubreuilh admitira que poderiam ser eficientes.
Dubreuilh pôs-se a falar apressadamente... Considerou que a atuação da Resistência fora diferenciada e, no limite, a agitação a que se dispunha podia ser tarefa de uma minoria... A “reconstrução” que veio depois se tornou obra impraticável... Agora podia afirmar categoricamente que apenas o ímpeto dos companheiros não bastaria para fazer frente às pressões...
(...)
Henri refletiu sobre aquelas considerações... Ele sabia que Dubreuilh mantinha o seu gênio de conduzir seus interlocutores para onde bem entendesse... Aquelas opiniões todas que ele estava despejando haviam sido do próprio Henri... Ele mesmo nem queria se envolver com política. Agora se via na obrigação de dizer que haviam “errado no golpe”... Porém deixou claro que se não tentassem estariam cometendo um grave erro.
Obviamente Dubreuilh concordou... De fato não provocaram mal a ninguém por terem feito política no pós-guerra. Mas insistiu que deveriam entender que “erraram o caminho”... Para sustentar essa conclusão, disse que bastaria reler o que escreveram às vésperas da libertação... Henri completou dizendo que, de fato, eram otimistas... Dubreuilh deu de ombros porque, em síntese, também pensava dessa forma e arrematou que aqueles foram tempos em que podiam mesmo esperar o “triunfo do bom direito” e o “futuro prometido aos homens de boa vontade”.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 8 de junho de 2015

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – Henri sabia que estava pagando alto preço por pretender viver livremente; desligamento de L’Espoir e telegrama de Dubreuilh; reencontro amistoso

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/06/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_7.html antes de ler esta postagem:

Henri bem sabia que Lambert conhecia a verdade a respeito do que se passara em fevereiro de 1944... O moço tinha seus registros, tinha certeza que Henri havia mentido à Justiça para livrar um patife como Mercier... E tudo para continuar de bem com Lucie e Josette Belhomme, dois tipos asquerosos que haviam colaborado com os alemães durante a ocupação!
Lambert não havia confirmado as informações que Sézenac buscara... Mas Henri sabia também que o rapaz podia rever a sua posição... Essa situação cairia como “arma terrível” nas mãos de Volange...
É por isso que Henri calculou que precisava prosseguir negando... Não havia dúvida de que o próximo passo de Sézenac seria uma conversa com Dubreuilh... Provavelmente o velho nunca ouvira falar de Mercier, e era possível que ele se lembrasse da presença de Henri em Paris no dia 23 de fevereiro de 1944... Apanhado de surpresa, Robert Dubreuilh não teria nenhuma razão para omitir o que sabia.
Essa hipótese implicava a busca de reconciliação... Mas confessar-se com Dubreuilh e, mais que isso, pedir a sua cumplicidade não seria nada fácil.
(...)
Henri estava em perigo... Entendia que também Vincent estava porque, mesmo que o rapaz e seu grupo nada tivessem com o assassinato do pai de Lambert, era certo que Sézenac tinha conhecimento a respeito de suas atividades.
Apesar do panorama de incertezas que vislumbrava, Henri admitiu que “faria tudo novamente se esse fosse o caso”...
Ter dormido com Josette custara-lhe alto preço... Quis salvá-la porque ela representava o real em sua ansiedade por uma existência plena e vida particular...
O extremo a que havia chegado era uma indicação de que ele definitivamente não podia ser incluído entre os que se dedicam integralmente às causas históricas...
Não havia como não levar em consideração suas contradições... Então achou por bem desligar-se definitivamente de L’Espoir e de tudo o que o jornal representava... É por isso que também decidiu se encontrar com Luc para tratar de sua carta de desligamento... O rapaz, que se tratava de uma crise de gota, sabia que mais cedo ou mais tarde isso ocorreria.
(...)
L’Espoir estampou a carta de demissão de Henri em primeira página... Ele não quis receber ninguém e informou ao porteiro do hotel que também não atenderia telefonemas...
Sem Josette, ou qualquer outra que pudesse lhe fazer companhia, não foi fácil adormecer...
(...)
Levantou-se mais tarde do que o costume...
Foi surpreendido por um telegrama enviado por Dubreuilh... Em síntese a mensagem tratava da “carta de adeus ao L’Espoir” e lamentava que ambos estivessem tão afastados quando tanta coisa os aproximava... Robert confessava-lhe a amizade e o desejo de se encontrarem... Também manifestava estranheza a respeito de alguém que o procurara com o intuito de provocar-lhe alguma maldade.
Henri quis encontrar-se com Dubreuilh o quanto antes... Pensou sobre o orgulho que o impedira de escrever-lhe... E também sobre o que Sézenac poderia ter dito a ele... Não havia dúvida, seria preciso confessar os fatos ao amigo... A mentira só pioraria sua condição. Mas sabia que não era sem embaraços que o encararia.
(...)
Henri demorou-se a tocar a campainha...
O encontro deu-se em satisfatório tão logo Dubreuilh o recebeu de braços abertos. Com grande sorriso, manifestou com sinceridade que estava feliz pelo reencontro... Henri retribuiu a gentileza, disse que era ele quem se alegrava e que só tinha a lamentar as incontáveis ocasiões em que adiara escrever-lhe.
O escritório era o mesmo ambiente de tantas outras reuniões... Também a poltrona onde Henri costumava acomodar-se estava como que à sua disposição.
Era certo que o ambiente não estava mudado...
Henri sentia-se à vontade, mas não se podia dizer que Dubreuilh continuasse o mesmo.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 7 de junho de 2015

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – Henri tranquiliza Josette a respeito do dossiê; cena de ciúme; Sézenac propõe acordo com Lambert; a certeza sobre libertação de Mercier a partir do falso testemunho podia ser confirmada documentalmente por Lambert; a mentira requer do mentiroso posturas que a sustentem

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/06/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-de.html antes de ler esta postagem:

Henri trabalhou até tarde da noite em sua redação sobre as atrocidades em Madagascar... Não parou nem mesmo para jantar... Eram pouco mais de onze horas da noite quando decidiu passar pelo teatro para pegar Josette.
(...)
Já estavam no carro quando ela perguntou se tudo havia corrido bem como sua mãe informara... Ele a tranquilizou e disse que não acreditava que seu testemunho pudesse gerar qualquer tipo de suspeita.
Josette quis saber se ele mesmo havia queimado os papéis e se teve curiosidade de olhá-los... Henri respondeu afirmativamente... Ela foi logo dizendo que tinha certeza de que nunca tiraram “fotografias inconvenientes” dela...
Henri disse que não sabia o que ela entendia por “inconveniente”, então emendou que ela aparecia sorridente em várias fotografias, sempre bonita e ao lado do capitão alemão. Ele falava sobre isso enquanto pensava que a pequena que estava ao seu lado era aquela mesma que estivera “indiferente a todos os infortúnios”, acompanhada dos “inimigos da nação” e servindo-os.
Ao chegarem ao prédio de Josette, Henri esclareceu que não subiria, pois também estava muito cansado e tinha ainda muito a fazer. Obviamente ela quis saber se ele reagia com rancor... De modo vago, ele explicou que na época da ocupação ela era livre e desimpedida para amar quem bem quisesse... Talvez fosse um pouco de ciúme, mas não estava zangado, apenas decidido a não subir.
(...)
No dia seguinte, Henri telefonou para Lambert para marcar o encontro tantas vezes adiado. Mas dessa vez foi o próprio Lambert quem manifestou a impossibilidade de se encontrarem no dia seguinte ou nos próximos...
Henri entendeu que o moço estava mesmo bem magoado... Garantiu que na semana seguinte se encontrariam... E para demonstrar que estava interessado, voltou a entrar em contato para reafirmar o compromisso.
De fato, alguns dias depois, Henri resolveu ter pessoalmente com o melindrado Lambert no jornal...
(...)
Ele subia a escada quando topou com Sézenac, que estava se retirando. Como já fazia um bom tempo que não se viam, Henri sugeriu que ele o acompanhasse para trocarem umas ideias... Ficou claro que o moço não estava para proza, já que deu a entender que “nada de especial” ocorria com ele... Então, sem dar satisfações, apressou o passo e desceu os degraus em direção à rua.
Henri notou que Sézenac estava visivelmente mais pesado, e pensou que a sua aparência desgastada só podia ser o resultado do uso abusivo de drogas...
(...)
No corredor encontrou Lambert encostado à parede... Parecia mesmo que ele o aguardava. Henri antecipou-se a dizer que havia acabado de falar com Sézenac.
Lambert respondeu que também tinha visto Sézenac. Disse que, ao que tudo indicava, ele estava se virando como delator da polícia...
Henri quis saber a respeito daquela conclusão ao mesmo tempo em que deu a sua opinião levando em consideração que todo viciado em droga precisa de dinheiro e, assim sendo, pode mesmo se tornar informante da polícia.
Ao notar que Lambert parecia transpirar mais do que o normal, Henri perguntou-lhe a respeito do assunto que tinham tratado...
Lambert falou que Sézenac chegou propondo “algo esquisito”... Em troca de certas informações, ele apontaria os patifes que haviam assassinado o seu pai... Deixou claro que as informações que o outro esperava eram exatamente sobre Henri. 
(...)
Não era bem a polícia que buscava informações a respeito de Henri... Lambert explicou que era o próprio Sézenac que o tinha como alvo...
Ele disse que sabia que Henri havia testemunhado em favor de certo Mercier, um tipo que “fazia mercado negro” na região de Lyons e que era frequentador da mansão de Lucie Belhomme...
Lambert disse mais... Ele mesmo conhecia detalhes do depoimento de Henri, que dava conta de que Mercier atuava com eles entre 1943 e 1944, e que este tipo estivera com Henri em La Souterraine 23 de fevereiro de 1944.
Henri respondeu que as informações correspondiam ao que ele havia jurado... Lambert retrucou com certo triunfo que nada daquilo era verdade... Sézenac e ele sabiam... Mercier simplesmente não existia para o grupo! Lambert não se afastava de Henri durante as ações... A própria tarefa em La Souterraine foi adiada para o dia 29 de fevereiro, Lambert o acompanharia, mas foi Chancel que acabou o levando à localidade. Como poderia se esquecer desses detalhes?
As palavras de Lambert soaram agressivas... E foi com agressividade que Henri o atacou... Sustentou que só ele conhecia Mercier; que ocorreram duas viagens a La Souterraine; e que na primeira delas os dois teriam ido juntos.
Henri disparou que Lambert não merecia nenhuma resposta, já que indiretamente o acusava de ter dado falso testemunho à Justiça.
Lambert não se intimidou... Garantiu que aquelas datas não lhe saíam da memória... Além do mais ele mesmo possuía suas agendas de registros da época... Era só uma questão de consultá-las, mas era praticamente certo que, no referido dia 23. Henri permanecera em Paris... Foram várias discussões a respeito da viagem, e ele sabia que foi uma só...
O que estaria por trás daquela mentira? O próprio Lambert sabia. E deixou claro para Henri que concluíra facilmente que Mercier tinha o controle sobre as Belhomme... Para salvá-las (as duas “cabeças raspadas”), Henri havia inocentado um delator da Gestapo.
(...)
Henri mostrou-se injuriado... Expulsou o rapaz do escritório gritando que poderia arrebentá-lo... Lambert se retirou. Deteve-se para dizer que nada falara a Sézenac, mas sua vontade era a de vê-lo denunciando aquele golpe sujo.
Lambert foi embora... Enfim estava livre de Henri.
Henri sabia que não era apenas uma questão de sustentar que a versão de Lambert era falsa...
A questão era bem outra... O rapaz o tinha em alta consideração, mas agora estava claro que aquele que falava de lealdade também era dado a “julgar aos outros”, e pouco se importava com os escrúpulos.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 6 de junho de 2015

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – de volta ao cotidiano, Henri fica satisfeito com as cartas que recebe; os acontecimentos em Madagascar lembram que ele tem “compromissos jornalísticos”; Truffaut entrega-lhe o dossiê; análise dos documentos revela que Josette e a mãe viveram para agradar aqueles que perseguiam companheiros de Resistência

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/06/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_5.html antes de ler esta postagem:

Henri saiu do gabinete do juiz de instrução como se tivesse prestado depoimento consonante com a verdade. Não havia em sua fisionomia nada que gerasse dúvida contrária.
Ele seguiu para seus afazeres cotidianos sem a menor crise de consciência. Era isso mesmo o que ele esperava que ocorresse.
(...)
É verdade que ao topar com Lambert, este não lhe sorriu... Mas era evidente que o rapaz estava chateado porque o esperado convite para uma conversa franca não tinha se efetivado... Isso era de fácil resolução, pois bastava saírem para jantar... Nada que ele não pudesse arranjar... Até porque, como já dava por encerrada a questão do perjúrio, poderia retornar ao convívio de amigos.
Era muito bom poder acertar sua papelada normalmente... Uma carta do doutor Mardrus anunciou a cura de Paule e solicitava que ele não a procurasse; Pierre Leverrier escrevera a respeito de sua intenção de comprar as cotas de Lambert...
As mensagens traziam-lhe alívio... Não precisaria preocupar-se com Paule... Poderia perfeitamente trabalhar com Leverrier, e isso significava que não precisaria desfazer-se de L’Espoir.
Algumas folhas datilografadas informavam sobre os problemas em Madagascar... Cerca de cem mil malgaxes haviam sido massacrados em confronto com tropas europeias... Os deputados, que não aprovavam as rebeliões, tinham sido presos e sofriam torturas... Nenhum periódico tratava do assunto... Ele trataria do editorial e talvez fosse interessante enviar Vincent para a cobertura dos fatos.
(...)
Estava envolvido nesses afazeres quando a secretária anunciou-lhe a chegada de Truffaut...
O homem entrou agradecendo profundamente... A Justiça já havia deferido a soltura de seu cliente... Para o advogado, se não fosse a intervenção de Henri, dificilmente Mercier sairia vivo da prisão... No entanto ele poderia se tornar um “novo homem” graças à absolvição.
Henri se irritou... Disse que o tipo estava livre para praticar novas patifarias... Esclareceu que desejava apenas que não se ouvisse mais falar daquele tipo. Truffaut respondeu que ele iria para a Indochina... Henri não queria nem saber, desejou que ele “matasse tantos indochineses quanto franceses fez morrer”... Que se tornasse herói por lá.
Truffaut parecia fazer questão de entregar-lhe o pacote contendo os documentos que seu cliente havia colecionado (e que se constituíam provas inquestionáveis contra Josette e a mãe). Henri questionou por que ele não encaminhava o dossiê para Lucie Belhomme.
O homem respondeu que Mercier desejava entregar os documentos àquele que o havia libertado... Mas estava claro que para Truffaut aquilo não fazia a menor diferença, Henri podia fazer o que bem entendesse com os papéis... Henri pensou mesmo que, como o advogado tinha certas pendências em relação à Belhomme, ele queria provocar certo desconforto à madame ao não entregar-lhe os documentos.
Henri quis saber se tudo o que havia sido colecionado estava mesmo no pacote... Truffaut garantiu que sim, e que Mercier não seria mais visto porque entendia que sua liberdade dependia diretamente de seus humores.
(...)
De posse do dossiê, Henri sabia que devia queimar os papéis... Mas viu-se tentado a conhecer as fotografias e cartas em seus detalhes...
Ele abriu o pacote e logo notou cartas e relatórios escritos em alemão e em francês... Ver Lucie ornamentada com joias, trajando vestidos provocantes e sentada entre oficiais alemães provocava nojo... Também Josette cedia seus encantos e sorriso aberto em meio às taças de champanhe. Isso também era bem difícil de suportar.
As marcas dos dedos de Henri acabaram impressas nos papéis fotográficos... A moça era uma graça só... Jovem e bela envolvida pelos braços de seu capitão... Enquanto manipulava o material pensava no quanto aquilo tudo provava que de fato moças como Josette se entregavam aos inimigos que massacravam criaturas como Yvonne e Lisa.
Algumas cartas revelavam a paixão que envolveu o casal... O alemão se esforçava para expressar em francês toda a sua devoção à bela Josette... Henri pensou no quanto eles haviam sido felizes e como tiveram oportunidades para se divertir... Apesar disso, o tipo parecia-lhe limitado intelectualmente e triste... Não havia dúvida de que sua morte tivesse provocado insegurança e depressão à Josette.
(...)
Henri reorganizou o pacote e o trancou numa gaveta... Assumiu que deveria queimá-lo o quanto antes...
Porém não podia se esquecer de seu artigo...
Retornou à mesa para escrever sobre o massacre em Madagascar...
Ele não podia se sentir culpado por mais essa tragédia.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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