É claro que Miro falou sobre a aventura que viveu em sua retirada da cidade de São Paulo (logo após a invasão policial a seu quarto na hospedaria de Sinhá Clotilde) ao Tião, Bento e Luvercy enquanto conversaram na noite após o combate nas proximidades de Queluz.
Vimos que ele viajou de trem a Campinas e de lá tomou outra composição em direção à divisa do estado de São Paulo com Minas Gerais... Se a primeira parte da viagem foi tranquila, já que adormeceu e só despertou no momento do desembarque, o prosseguimento teve início perturbador porque o tipo que estava no banco posicionado de frente ao seu não parava de encará-lo... Miro suspeitou que se tratasse de um tira...
(...)
Porém o homem surpreendeu
ao se apresentar com um sorriso no rosto... Ele era um mascate (caixeiro
viajante) chamado Salim Engelsdorff... Miro apresentou-se como enfermeiro, então
Salim foi logo o chamando de doutor... Disse que já fazia vinte anos que
viajava pelo país e sabia que as pessoas chamavam de doutor qualquer um que ajudasse
a curar os males do físico, desde dores de barriga até as doenças venéreas...
Miro já nem se lembrava de que estava fugindo e deu
muita risada do relato do Salim... Notou o seu sotaque e percebeu que o nome
Engelsdorff (algo como “aldeia dos anjos”, numa tradução livre) era alemão...
Mas Salim o corrigiu e afirmou que se tratava de um judeu polonês...
Seus clientes insistiam em chamá-lo de Turco, mas ele nem se importava mais
porque sua intenção era apenas a de que permanecessem seus fregueses.
Salim quis saber para onde é que o doutor Teodomiro
estava viajando... Miro disse que não tinha destino certo, e explicou que
buscava alguma pequena cidade interiorana onde pudesse se estabelecer
profissionalmente... Talvez em algum hospital ou posto de saúde... Salim deu o
seu palpite e falou que, se era assim, Miro ficaria desempregado porque as
cidades do interior eram muito carentes de tudo, principalmente de hospitais ou
ambulatórios médicos.
Evidentemente as palavras de Salim deixaram Miro bem angustiado...
Sobretudo porque sabia que carregava bem pouco dinheiro, simplesmente o que lhe
restava da mesada de sua madrinha e do pagamento recebido pelos trabalhos dos
acadêmicos de Direito. Pensou sobre isso e temeu que sua expressão pudesse
denunciar o seu segredo... Decidiu dizer que não sabia quando poderia retornar
para a capital, onde “as coisas” estavam meio complicadas para ele.
Salim demonstrou que compreendia a situação do Miro... Emendou que
também em sua terra, naquele momento, ninguém podia alimentar expectativas a
respeito do futuro...
(...)
Nós sabemos a que tipo de incertezas o Salim se referia.
Miro suspeitou que também a vida do caixeiro tivesse suas
atribulações... Há vinte anos no Brasil... Só podia viver em fuga... Certamente
sofrera perseguições em sua Varsóvia.
(...)
Eles não conversaram sobre
isso... Nenhum dos dois tinha interesse de falar a respeito de suas
particularidades.
Logo chegaram a Marilândia
Paulista (cidade fictícia criada por Faustino), de onde seria possível
conseguir novos embarques para outras localidades em Minas Gerais ou no estado
de Mato Grosso.
Salim sugeriu que o
doutor Teodomiro ficasse algum tempo em Marilândia... Bem podia ser que
conseguisse algo... O que poderia fazer numa cidadezinha de menos de cinco mil
habitantes, distante de tudo?
Para Salim era aí que as possibilidades podiam aparecer... Exatamente
por não ter nada é que o lugar era bom para ele, que trazia mercadorias da
cidade grande... Quem sabe o doutor não se estabeleceria como o primeiro médico
do lugar?
O comissário do trem passou
pelo corredor gritando que todos os passageiros deveriam descer... E anunciou o
entroncamento para baldeações para o norte e o noroeste.
(...)
Salim solicitou que o novo
amigo o ajudasse no transporte de sua bagagem (quatro malas e um baú!)... Ele
explicou que, como sempre viajava com muita tralha, não podia se furtar a fazer
novos conhecidos...
Na estação Miro se demonstrou vacilante... Mas
Salim o animou e mostrou que um chofer que estava com seu veículo estacionado
próximo a estação poderia levá-los até a Hospedaria Paraíso, onde ele poderia
banhar-se, tomar uma boa sopa preparada pela dona Margarida e descansar.
Leia: A
Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto