O pescador se aproximou e o primeiro alcaide principiou a fazer perguntas típicas de um formulário... “Nome, sobrenome, profissão”... Mas a secretária o interrompeu garantindo que haveria o momento para que o cidadão preenchesse as lacunas.
Então o alcaide se dirigiu ao homem simples e disse Curriculum Vitae...
Obviamente o pescador ficou sem entender.
A secretária explicou que era preciso indicar o que havia acontecido de importante em sua vida... Aquilo era necessário para que o sistema pudesse conhecê-lo melhor. Mas o pescador respondeu que sua vida pertencia somente a ele e, portanto, nada tinha a dizer.
A mulher esclareceu que “assunto privado” eram palavras que não mais fariam sentido em Cádiz... Ela garantiu que, desde que Peste assumiu o governo, a “vida pública” de cada um era a única que seria autorizada pelo regime.
(...)
O
primeiro alcaide perguntou se o pescador era casado... O homem respondeu que
havia se casado em 31... Na sequência perguntaram o motivo da união... O
pescador ficou “passado” com aquela indagação.
A
secretária interveio explicando que era uma boa maneira de “tornar público o
que deve deixar de ser pessoal”... O pescador soube dizer apenas que havia se
casado porque era isso o que todos faziam quando “ficavam homens”.
O
primeiro alcaide perguntou se ele era divorciado... A resposta foi negativa e
ele acrescentou que era “viúvo”.
Quiseram saber se ele havia
se casado novamente e mais uma vez a resposta foi negativa.
Mas
por que não se casara novamente?
O
pescador berrou que amava a esposa falecida... Então a secretária se intrometeu
e disse que aquilo era “bem bizarro”, e mais uma vez quis saber o motivo.
(...)
O homem estava muito confuso e perguntou se era
possível explicar tudo sobre nossos sentimentos ou sobre o que ocorria em
nossas vidas... A secretária disse que numa sociedade organizada existe o dever
de se explicar tudo.
O primeiro alcaide fez
outra pergunta: Antecedentes?
O pescador nem sabia o que
a palavra significa... O interrogador fez novas perguntas para esclarecer...
Elas faziam referências a condenações passadas por pilhagens, perjúrio e
roubo... Aquilo soou como um insulto ao pobre homem.
A secretária, em tom
de quem conclui, exclamou que estavam diante de um tipo honesto... Acrescentou
já desconfiava! Pediu para o primeiro alcaide colocar a observação: “a
fiscalizar”...
Continuando
o interrogatório, o serviçal da secretária perguntou se o pescador alimentava
“sentimentos cívicos”... Ele respondeu que sempre servira bem aos concidadãos e
que nunca deixara qualquer um, por mais pobre que fosse, sem “um pouco de bom
peixe”...
A secretária sentenciou que
aquela maneira de responder não era autorizada. O primeiro alcaide complementou
garantindo que aqueles assuntos sobre “sentimentos cívicos” eram sua
especialidade... Então se pôs a explicar ao humilde cidadão que, por
“sentimentos cívicos”, tratava-se de saber se ele respeitava a ordem existente
pelo simples fato de ela existir.
O
pescador respondeu afirmativamente e acrescentou “quando ela (a ordem
existente) é justa e razoável”. Mas a secretária fez a sua objeção ao garantir
que a resposta era indecisa... Foi por isso que solicitou ao primeiro alcaide
que acrescentasse que os “sentimentos cívicos” do pescador eram duvidosos.
(...)
Até
mesmo o primeiro alcaide teve dificuldades para fazer a última pergunta ao
pescador...
A
questão era simplesmente “razões de ser?”
O
pescador emendou que não entendeu nada... E disse que a própria mãe poderia ser
“mordida no lugar do pecado” se estivesse mentindo.
A
secretária “traduziu” dizendo que ele devia esclarecer as razões que
justificassem a sua permanência entre os viventes. Ele quis saber quais razões
ela gostaria que ele apresentasse.
Em
vez de responder, a secretária observou ao primeiro alcaide que o “abaixo
assinado” reconhecia que sua existência não tinha justificativas... E
acrescentou que aquilo facilitava o regime, que estaria livre de qualquer
questionamento quando o “momento viesse”.
Depois, voltando-se ao pobre pescador, ela comentou
que ele compreenderia melhor a importância de um “certificado de existência”...
No seu caso, seria concedido em caráter provisório “e em termos”.
(...)
O pescador já não aguentava
aquela tortura... Então disse que não se importava... Provisório ou não, que
lhe entregassem imediatamente o papel, pois precisava retornar para casa.
A secretária esclareceu que
antes de receber o certificado provisório era necessário obter um atestado de
saúde... “Pequenas formalidades” na “divisão dos processos em curso”,
localizada no primeiro andar... “Escritório das tramitações; seção auxiliar”...
Simples assim...
O pescador saiu em busca do atestado.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus-segundo_14.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto