sexta-feira, 9 de outubro de 2015

“Estado de Sítio”, de Albert Camus – segundo ato – pobre pescador é chamado a responder formulário para concessão de “certificado de existência”; vida pública deve se sobrepor à vida privada; o sistema e seus questionamentos confusos; é uma questão de mostrar que sua existência tem alguma importância; onde o homem humilde não vê nenhuma lógica, a secretária insiste que há “ciência”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus-inicio.html antes de ler esta postagem:

O pescador se aproximou e o primeiro alcaide principiou a fazer perguntas típicas de um formulário... “Nome, sobrenome, profissão”... Mas a secretária o interrompeu garantindo que haveria o momento para que o cidadão preenchesse as lacunas.
Então o alcaide se dirigiu ao homem simples e disse Curriculum Vitae...
Obviamente o pescador ficou sem entender.
A secretária explicou que era preciso indicar o que havia acontecido de importante em sua vida... Aquilo era necessário para que o sistema pudesse conhecê-lo melhor. Mas o pescador respondeu que sua vida pertencia somente a ele e, portanto, nada tinha a dizer.
A mulher esclareceu que “assunto privado” eram palavras que não mais fariam sentido em Cádiz... Ela garantiu que, desde que Peste assumiu o governo, a “vida pública” de cada um era a única que seria autorizada pelo regime.
(...)
O primeiro alcaide perguntou se o pescador era casado... O homem respondeu que havia se casado em 31... Na sequência perguntaram o motivo da união... O pescador ficou “passado” com aquela indagação.
A secretária interveio explicando que era uma boa maneira de “tornar público o que deve deixar de ser pessoal”... O pescador soube dizer apenas que havia se casado porque era isso o que todos faziam quando “ficavam homens”.
O primeiro alcaide perguntou se ele era divorciado... A resposta foi negativa e ele acrescentou que era “viúvo”.
Quiseram saber se ele havia se casado novamente e mais uma vez a resposta foi negativa.
Mas por que não se casara novamente?
O pescador berrou que amava a esposa falecida... Então a secretária se intrometeu e disse que aquilo era “bem bizarro”, e mais uma vez quis saber o motivo.
(...)
O homem estava muito confuso e perguntou se era possível explicar tudo sobre nossos sentimentos ou sobre o que ocorria em nossas vidas... A secretária disse que numa sociedade organizada existe o dever de se explicar tudo.
O primeiro alcaide fez outra pergunta: Antecedentes?
O pescador nem sabia o que a palavra significa... O interrogador fez novas perguntas para esclarecer... Elas faziam referências a condenações passadas por pilhagens, perjúrio e roubo... Aquilo soou como um insulto ao pobre homem.
A secretária, em tom de quem conclui, exclamou que estavam diante de um tipo honesto... Acrescentou já desconfiava! Pediu para o primeiro alcaide colocar a observação: “a fiscalizar”...
Continuando o interrogatório, o serviçal da secretária perguntou se o pescador alimentava “sentimentos cívicos”... Ele respondeu que sempre servira bem aos concidadãos e que nunca deixara qualquer um, por mais pobre que fosse, sem “um pouco de bom peixe”...
A secretária sentenciou que aquela maneira de responder não era autorizada. O primeiro alcaide complementou garantindo que aqueles assuntos sobre “sentimentos cívicos” eram sua especialidade... Então se pôs a explicar ao humilde cidadão que, por “sentimentos cívicos”, tratava-se de saber se ele respeitava a ordem existente pelo simples fato de ela existir.
O pescador respondeu afirmativamente e acrescentou “quando ela (a ordem existente) é justa e razoável”. Mas a secretária fez a sua objeção ao garantir que a resposta era indecisa... Foi por isso que solicitou ao primeiro alcaide que acrescentasse que os “sentimentos cívicos” do pescador eram duvidosos.
(...)
Até mesmo o primeiro alcaide teve dificuldades para fazer a última pergunta ao pescador...
A questão era simplesmente “razões de ser?”
O pescador emendou que não entendeu nada... E disse que a própria mãe poderia ser “mordida no lugar do pecado” se estivesse mentindo.
A secretária “traduziu” dizendo que ele devia esclarecer as razões que justificassem a sua permanência entre os viventes. Ele quis saber quais razões ela gostaria que ele apresentasse.
Em vez de responder, a secretária observou ao primeiro alcaide que o “abaixo assinado” reconhecia que sua existência não tinha justificativas... E acrescentou que aquilo facilitava o regime, que estaria livre de qualquer questionamento quando o “momento viesse”.
Depois, voltando-se ao pobre pescador, ela comentou que ele compreenderia melhor a importância de um “certificado de existência”... No seu caso, seria concedido em caráter provisório “e em termos”.
(...)
O pescador já não aguentava aquela tortura... Então disse que não se importava... Provisório ou não, que lhe entregassem imediatamente o papel, pois precisava retornar para casa.
A secretária esclareceu que antes de receber o certificado provisório era necessário obter um atestado de saúde... “Pequenas formalidades” na “divisão dos processos em curso”, localizada no primeiro andar... “Escritório das tramitações; seção auxiliar”...
Simples assim...
O pescador saiu em busca do atestado.
Leia: Estado de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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