Talvez
seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/03/decamerao-de-giovanni-boccaccio_4.html
antes de ler esta postagem:
Os irmãos florentinos, também devido aos seus
interesses, contribuíram com o velho Ciappelletto para que o seu plano
funcionasse a contento... Vimos que ele revelou-se também um mestre na arte de
encenar, passar-se por piedoso e santo homem, para obter a absolvição religiosa.
Questionado se tivera algum
comportamento motivado pela ira, o velho Ciappelletto confessou ter pecado
muitas vezes ao se irritar e esbravejar contra aqueles que não seguem os
mandamentos de Deus, principalmente os mais jovens que preferem as tavernas às
igrejas... O frade garantiu que aquela se tratava de uma “boa ira”, e disse que
não sabia que penitência poderia indicar a tal atitude... Então lhe perguntou
sobre homicídios ou falsidades que tivesse promovido em prejuízo de outras
pessoas... Mostrando indignação, Ciappelletto refutou completamente o que ouviu...
Não, nem em pensamento ele ousaria pecar daquela forma. Explicou que, quando encontrava
alguém de tão horrendas capacidades, não era outra a sua reação a não ser a de se
afastar e ordenar que o delinquente se convertesse a Deus.
O frade quis saber se, durante a vida, ele dera algum falso testemunho...
Teria surrupiado ou falado mal de alguém? Sabemos que essas eram as suas
especialidades, mas o descarado disse que em certa ocasião falara muito mal de
um vizinho que só sabia embriagar-se e judiar da própria esposa... Também a
esse respeito o velho frade ficou sem saber o que dizer... Então voltou à
carga, perguntando se (enquanto comerciante que era) já havia enganado
alguém... O impostor saiu-se com uma história que beira o ridículo...
Ciappelletto falou que em certa ocasião negociou um tecido e guardou o dinheiro
recebido sem o ter conferido em uma gaveta... Só mais tarde é que notou que o
comprador havia se enganado, pois na importância engavetada contavam-se quatro
centavos a mais... Contou que o seu procedimento foi devolver a parte que não
lhe cabia, mas nunca encontrou aquele que foi prejudicado... Finalizou dizendo
que deu os quatro centavos de esmola, “pelo amor de Deus”...
É claro que mais essa
atitude de Ciappelletto foi aprovada pelo frade... Às demais perguntas que este
lhe fez respondia com o mesmo cinismo... E foi dessa forma que, de homem
desregrado e pecador que realmente era, foi considerado puro (ilibado, um
cristão exemplar) pelo seu último “último confessor”... Mas Ciappelletto não se
deu por satisfeito e, querendo mostrar-se contrito (ainda que carregasse “pequenos
deslizes contra Deus e a Igreja”), disse ter falhado ao solicitar a um criado
que varresse a casa sem levar em consideração que já se tratava de momento de “guardar
o domingo santo”... Também por isso foi absolvido pelo frade, que se referiu ao
episódio como “pequena falta”... Ciappelletto o corrigiu e voltou a lamentar
não ter observado o dia sagrado em que “Nosso Senhor ressuscitou da morte”... O
mentiroso disse ainda que em certa ocasião cuspiu sem querer numa igreja...
Sobre isso, o frade informou que os religiosos procedem cotidianamente da mesma
forma... Fazendo aparência de transtornado, Ciappelletto advertiu que não
aceitava aquela atitude, pois o “santo templo” é lugar que merece permanecer o
mais limpo de todos.
Depois de várias
observações similares, Ciappelletto começou a chorar... Evidentemente estava
encenando, mas tão bem o fazia que o religioso se preocupou... O bondoso frade
quis saber o que estava acontecendo. Quando imaginamos que o repertório de
mentiras dele havia se encerrado, ele saiu-se com mais uma de dramaticidade
ímpar.
O frade antecipou que,
tendo ouvido a sua exemplar contrição, não acreditava que ele pudesse dizer
algo que fosse ofensivo ao Criador... Chorando copiosamente, o falsário
manifestou tratar-se de “pobre coitado”, cujo pecado era tão grande que não
imaginava obter o perdão de Deus por intermédio do bondoso frade... O religioso
não conseguia entender como o outro não cessava o seu pranto, que transmitia a
ideia de que era o mais desgraçado dos homens... Então o frade ficou ansioso por
ouvir mais essa confissão.
Finalmente
Ciappelletto disse que, quando era ainda muito pequeno, blasfemou contra a
própria mãe. Parou de falar para chorar mais... Recebeu o consolo do frade, que
disse que as pessoas blasfemam diariamente contra Deus e, ainda assim, Ele as
perdoa... Falou que mesmo que Ciappelletto fosse um dos que crucificaram
Cristo, seria absolvido de todos os seus pecados... Garantia isso com base na
contrição por ele manifestada.
Ciappelletto caprichou no
tom emotivo para revelar que se sentia aliviado pela intercessão do bondoso
frade... O religioso acreditou em tudo o que ouviu. Quem não acreditaria
naquele velho, fantasiado em piedoso, à beira da morte? Absolveu-o e, mais que
isso, ofereceu o lugar que os frades tinham por sagrado (na igreja) para
sepultá-lo.
Então
o plano do velhaco funcionou... Aceitou prontamente a oferta feita pelo
frade... Solicitou a Eucaristia e a Extrema-Unção... Muito satisfeito, o frade
confirmou que assim o faria.
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Leia: Decamerão. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto